São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 1997
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O bolo e os bobos

JOSÉ SARNEY

O sonho de um mundo homogêneo, neoliberal, acabou. Ele foi construído nas ruínas do fim da Guerra Fria. Velhas idéias, novas utopias: a livre circulação do capital, sem fronteiras, a lei do mercado transformado em Deus a resolver tudo, privatizações, Estado mínimo, sem força para controlar as forças da economia, a dolarização das moedas.
Esse modelo foi imposto pelas regras do vencedor, são os Estados Unidos que desfrutam dos seus resultados. Não é um modelo para criar uma humanidade justa. O marxismo pelo menos era uma idéia generosa, uma sociedade sem classes, a utopia da felicidade. O socialismo de Estado, este sim, matou a liberdade e esmagou os seus fins, pelos meios. O neoliberalismo fala em economia, rentabilidade, competitividade, racionalização e globalização da produção. Vivemos uma era de obscurantismo, sem idéias, sem história.
Quando a economia vai bem, não se pode aumentar salários, quando vai mal, têm-se de diminuí-los, porque a desgraça do desemprego é maior do que reduzir a comida. Quando será a hora do homem? Privatiza-se, destrói-se o Estado, mas o dinheiro da venda volta para os credores em forma de pagamento da dívida, tantas vezes paga, e não para a melhoria da qualidade de vida.
A segurança desse modelo neoliberal só existe nos Estados Unidos. Todos vivem no mundo da insegurança. Ontem México, hoje Ásia. O "New York Times", o porta-voz da sociedade americana, dizia em editorial que o FMI devia deixar a Coréia quebrar. É a lei do mercado. Quem fez a Coréia, Taiwan, Cingapura, Malásia, os Tigres, o Japão, o modelo asiático, o Plano Marshall? Os Estados Unidos, como instrumentos da confrontação mundial, nos tempos da URSS e da bipolarização. Hoje, não são mais necessários. Quebrem, e eles compram os salvos da quebra, ocupam os mercados que já eram deles, como estão comprando tudo nas economias emergentes. O Brasil deve ter a consciência de que a crise não está no fim, mas no começo. Cuide-se e resista. Temos de rever o modelo colonial da dolarização, que foi criado em momentos de crise, mas que não pode ser um modelo em si mesmo. Rever a política de privatização, criar mecanismos de proteção à economia nacional. Sairmos da abertura selvagem.
Na Europa só restam, radicais desse modelo, a Alemanha e a Espanha. Blair, Jospin, as eleições em Portugal e na Argentina apontam que a utopia neoliberal não era nem utopia nem liberal. É uma política de domínio do mundo, pela mentalidade e ação das preocupações econômicas, sem nenhuma proposta social, sem nenhum questionamento sobre uma forma de Estado que possa impor controles a essa selvageria; uma sociedade de desempregados, possuída pelo medo de não ter uma fonte de vida e rica de indicadores econômicos, estrelas de ouro, no reino encantado das maravilhas, que só existem nas estatísticas.
O homem não foi feito para a economia, e sim a economia para o homem. Essa história de o bolo crescer para dividir é conversa para boi dormir. Nunca ocorreu nem ocorrerá. O mercado é concentrador de renda. Mesmo nos Estados Unidos os pobres estão mais pobres e os ricos com mais vontade de comer. Os outros são os bobos.

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