São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 1997
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Passado nazista ainda persegue o escritor

EDUARDO SIMANTOB
ESPECIAL PARA A FOLHA

Heinrich Harrer é um bom exemplo das ambiguidades que conturbaram o século 20.
Autor de uma dezena de relatos de viagem, Harrer causou um espinhoso frisson nas principais publicações da Europa e EUA por ocasião do lançamento do filme "Sete Anos no Tibet", dirigido pelo francês Jean-Jacques Annaud.
O súbito estrelato de Harrer pouco tem a ver com a escalação do galã Brad Pitt para encarná-lo em sua epopéia, fugindo de um campo de prisioneiros na Índia britânica à época da Segunda Guerra Mundial, para chegar à cidade proibida de Lhasa, de onde o Dalai Lama governava um Tibete ainda livre.
A bomba foi lançada pela revista alemã "Stern", em setembro, escancarando o passado nazista de Harrer e trazendo à luz uma personalidade complexa demais para um julgamento imediato.
A história do livro começa em 1939, alguns meses antes do início Segunda Guerra Mundial. Está então o autor embarcando para o Oriente, membro de uma expedição de montanhistas alemães aos picos do Himalaia.
Logo nos primeiros parágrafos, Harrer expõe com insuspeito ardor sua tara pelo montanhismo e por relatos de antigos exploradores, como Alexander von Humboldt. Uma declaração dos princípios que norteiam suas nobres motivações, o desafio à natureza, a transposição de fronteiras físicas, humanas e geográficas.
E que talvez tente justificar o fato, desembrulhado pela "Stern", de o cabo SS número 73.896 Heinrich Harrer deixar para trás sua mulher grávida e todo um passado que o atual octogenário não faz questão de lembrar.
Harrer nasceu numa cidade mineira da Áustria, Huetenberg, e se destacou na juventude como exímio esquiador e montanhista. Membro do time austríaco de esqui nas Olimpíadas de 1936, na Alemanha, apertou a mão do "Fuehrer" e participou, em 1938, da conquista da face norte do Eiger, considerada a escalada mais difícil dessa montanha na Suíça.
Casou com a filha de um dos mais importantes geofísicos do Reich, Alfred Wegener. Na certidão, um carimbo de qualidade genética da união assinada por Heinrich Himmler, comandante das SS.
Harrer respirava os ares de seu tempo no topo de uma posição bastante privilegiada, numa escalada social modelar. Já em 1933, vestia a "camisa parda" dos grupos paramilitares nazistas, então ilegais na Áustria.
Mas Harrer teve a sorte de não estar na Europa quando o horror virou regra. Não cometeu nenhum crime de guerra e sempre se assumiu como um esportista. Mas, para o diretor Annaud, Harrer era simplesmente um arrivista, obcecado pela fama, e só permaneceu no Tibete devido ao status privilegiado de que desfrutava.
O caso Harrer lembra o da cineasta alemã Leni Riefenstahl, a mais famosa montanhista do Reich, e diretora do filme "O Triunfo da Vontade", em que transformou a pessoa de Adolf Hitler num poderoso símbolo de liderança nacional.
Durante a Guerra, Riefenstahl se trancou em sua casa nas montanhas e só saiu quando a Alemanha era escombros. Por ocasião de um documentário sobre sua vida, em 1993, reacendeu-se o debate se era nazista ou não.
Qualquer que fosse o veredito, o fato é que tanto Harrer quanto Riefenstahl encarnavam o ideal nazista de pureza ariana. Condená-los ou não, e por que motivo, é outra história.
Mas, durante a última feira de livros de Frankfurt, em outubro, o agente de Harrer promoveu um encontro com seus editores no mundo todo, boa parte deles judeus. O escritor perguntou se algum deles havia se incomodado com as revelações de seu passado. Ninguém rescindiu o contrato.
(EdS)

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