São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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A dialética dissonante

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Recai sobre Theodor W. Adorno (1903-1969) uma tripla reputação: trata-se de um autor difícil, pessimista e importantíssimo. Filósofo, sociólogo, crítico literário e musicólogo, Adorno é, como se sabe, um acerbo adversário da cultura de massas (preferia denominá-la "indústria cultural") e certamente o mais refinado, exigente e complexo pensador marxista do século 20.
Esta coleção de 12 ensaios, escritos em sua maioria na década de 50, aparece no Brasil num momento interessante. De um lado, Adorno já se tornou uma referência "inescapável", como se diz, para quem se dedica à crítica da cultura.
Hoje em dia, as duas vertentes -a de um "Adorno inescapável" e a de um "Adorno obsoleto"- convivem estranhamente. Todos concordam com a idéia de que ele é pessimista e elitista demais, mas todos usam indiscriminadamente o que ele escreveu.
Corre-se o risco, para dizer francamente, de uma "fetichização" da obra de Adorno. Isto significa: 1) referir-se a Adorno sem ter lido direito seus livros, 2) criticá-lo por obrigação e 3), o que é pior, usá-lo como confirmação teórica para antipatias apressadas e estudos empíricos de sociologia cultural malfeita.
Detenho-me neste último ponto. Qualquer pessoa com trânsito na área acadêmica conhece aquilo a que estou me referindo. Uma tese qualquer -digamos, sobre as novelas de Dias Gomes, sobre Maurício de Sousa, sobre Ratinho- tende a descrever em minúcias seu objeto para em seguida contrapô-lo ao pensamento adorniano. Adorno funciona como uma espécie de árbitro, como avalista "in extremis", como hipótese, tese, antítese e síntese de tudo o que se tem a dizer. Depois, o autor da tese "modera" um pouco o que acabou de citar.
Mas Adorno é bem mais do que isso, e a publicação de "Prismas" no Brasil ajuda a dissipar um pouco esta instrumentalização de seu pensamento. Desde logo, esta ótima tradução dissipa em grande parte a aura de "dificuldade" que se associa a seu nome. Não me lembro de ter lido um livro de Adorno tão "compreensível" quanto este.
Sem dúvida, há um problema estrutural a ser enfrentado por todo leitor de Adorno. Suas frases tendem ao aforístico, ao sintético; aspiram ao "ukasse", ao decreto de cima para baixo; mas ao mesmo tempo submergem diante de um vórtice dialético, diante das complicações do marxismo ocidental. É comum, então, que operem uma espécie de curto-circuito: "Oswald Spengler foi esquecido com a rapidez da catástrofe, em direção à qual, segundo sua própria teoria, caminhava o curso do mundo".
Mas citar Adorno é dificílimo, exatamente porque cada uma de suas frases parece inserir-se num movimento complexo demais. Quando lemos um ensaio de "Prismas", por exemplo, cada frase parece viver isoladamente, é lapidar. Mas, se fechamos o livro e tentamos reencontrá-la, ela desaparece dentro de um raciocínio mais amplo. Isso faz de Adorno um autor "ilegível" e sempre relido: seu impulso crítico, seu "pessimismo" são fetichizados, mas seu texto não: é isso o que o torna sempre surpreendente, mas também sempre igual à imagem que fazíamos dele.
A "dificuldade" de Adorno pode, assim, tornar-se rapidamente uma "facilidade" para o leitor. Este é o risco. Para ilustrar melhor a minha tese, traduzo a frase acima em "adornês": "A dificuldade de Adorno, servindo para afastar o leitor, transforma-o em presa daquela mesma transparência que ele buscava afirmar. Mas, prendendo-se à transparência, o leitor de Adorno sucumbe ao sortilégio de uma fraseologia que precisamente visava a negá-la".
Mas é como se, para não se mostrar pessimista, Adorno invocasse uma idéia utópica do "possível": sua reação a pensadores reacionários termina, a meu ver, não sendo mais do que a fetichização de um futuro alternativo. Mas, sobre o suposto pessimismo de Adorno, em todo caso, recomendo muito o ensaio de Jeanne-Marie Gagnebin, em "Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História" (Imago).
Os outros ensaios de "Prismas" se livram mais facilmente desta proximidade com os críticos reacionários da cultura. Adorno defende Bach contra seus admiradores, fala de Schoenberg, de Kafka, de Benjamin, de Valéry e Proust, de George e Hofmannstahl.
Há em todos uma lição formal, que podemos creditar ao compositor Schoenberg. Trata-se, segundo os princípios do dodecafonismo, de expor um tema, uma série de 12 notas, para depois "invertê-la", virá-la do avesso; o elogio se transforma em crítica, a crítica volta a ser elogiosa de novo.
A dialética de Adorno é musical e dissonante por natureza. "Prismas" renova esse desafio, contra a tentação de imobilizá-lo em leitura obrigatória. Agora que o capitalismo internacional parece ao mesmo tempo frágil e inabalável, a atualidade de Adorno se faz sentir com mais força. Ele não gostaria desta frase. Não há propaganda aceitável, e toda resenha a favor tem algo de propagandístico. Melhor dizer (em adornês) que, na sua obsolescência, a obra de Adorno mantém uma atualidade que é muito mais forte do que a vontade de torná-la atual a todo custo.

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