São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Cachorro também é caso de polícia

GILBERTO DIMENSTEIN

Ao montar a estratégia de combate contra a violência, Nova York intensificou a perseguição contra um pacífico e aparentemente inofensivo personagem da cidade -os donos de cães.
Policiais receberam ordens para multar quem não cuida da sujeira de seus animais. São auxiliados por 200 fiscais que perambulam pelas ruas e parques.
A multa começa em R$ 100,00 e vai crescendo à medida que a delinquência se repete.
É comum ver mulheres com vestidos caríssimos, salto alto, vestindo luva de plástico que se converte num saco, procurando a cesta de lixo mais próxima.
Há poucos dias, os fotógrafos flagraram John Kennedy Jr., um dos personagens mais charmosos e sofisticados do país, agachado ao lado de seu cachorro com uma dessas luvas descartáveis.
O esforço tinha de dar certo. Ninguém considera uma boa idéia pagar R$ 100,00 para cada passeio incivilizado de seu cachorro.
Nunca as ruas estiveram tão limpas -e em 30 anos nunca estiveram tão pacíficas.
Haveria alguma relação entre ruas mais limpas e menos violência?
*
Montados na autoridade de quem reduziu a níveis jamais imaginados a criminalidade, os responsáveis pela segurança de Nova York estão convencidos de que existe uma relação entre criminalidade e limpeza.
Uma aposta, inicialmente ridicularizada, guiou a polícia: a melhoria da qualidade de vida, com a punição aos pequenos delitos, teria efeito psicológico. Os marginais perceberiam a ordem e pensariam duas vezes antes de cometer um crime.
Ordem significava ir aos mínimos detalhes. Significava também ver punidos desde quem urina publicamente, os grafiteiros, motoqueiros sem capacete, mendigos agressivos e quem pula roleta do metrô sem pagar até os donos de cachorro.
Traduzindo: a sensação de impunidade estimula a delinquência.
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Os brasileiros estão apavorados com o aumento da delinquência que transformou os caixas de banco 24 horas em arapucas -e com razão.
Cobram da polícia o fim da impunidade -e, mais uma vez, com razão. Magistral exemplo: estatística divulgada na semana passada mostra que só 2,5% dos crimes cometidos na cidade de São Paulo são resolvidos.
Com 2,5% de casos resolvidos, o crime, na verdade, compensa.
Quem analisar o sucesso de cidades americanas contra o crime vai constatar que, junto com os projetos sociais de educação e emprego, aumentou, e muito, o número de prisões e detenções.
Os policiais de Nova York dizem que, em essência, não fazem nada de novo. Descobrem onde estão os delinquentes e os tiram de circulação. O delegado que não obedece a essa regra básica perde o emprego.
Combater os pequenos delitos apenas acelera a percepção a cada instante de que a punição é real. Tem lógica.
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Nas cidades brasileiras vivemos, em regra, o contrário: a percepção a cada instante da impunidade, com carros subindo na calçada ou fazendo filas duplas, gente jogando papel nas ruas, pessoas que fazem dos muros banheiros públicos.
Os cachorros são um ótimo exemplo da impunidade. Segundo dados oficiais, a prefeitura de São Paulo tem de enfrentar 12 toneladas diárias de rastros caninos.
O campeão é o bairro de classe média onde mora o presidente Fernando Henrique Cardoso. Diante desse fato, virou até ironia o nome do bairro: Higienópolis.
Ou seja, a elite que reclama da impunidade de quem ataca nos caixas eletrônicos e incomoda-se com a sujeira dos mendigos e meninos de rua é exatamente aquela que emporcalha as ruas -e ajudada pelo mesmo poder público incapaz de colocar ordem.
Chegam aqui a Nova York e sentem o maior prazer em andar nas ruas, dizendo como o Brasil é subdesenvolvido. Experimente, porém, trazer seu cachorrinho, deixando fazer o que bem entenda -depois tente ver se o guarda consegue entender o significado da palavra "jeitinho".
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Em Nova York o crime caiu porque, em essência, aumentou a taxa de cidadania. Vai desde melhoras no envolvimento da comunidade em projetos de educação e saúde, passando pela geração de empregos, até andar em ruas com menos fezes e mais policiais.
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PS - Donos de cachorros que emporcalham uma cidade são um ótimo retrato sociológico do país. Os brasileiros, em geral, adoram criticar o poder público, mas se recusam a fazer a sua parte. O público é algo abstrato.
Pequenos gestos poderiam fazer uma grande diferença. Imagine, por exemplo, se cada escola adotasse a praça pública da redondeza, que poderia ser usada até para aulas de ciências.
Conheço várias escolas privadas que se dizem reverentes aos valores democráticos, pregam engajamento social e cidadania, mas que paralisam o trânsito com filas duplas. Falar em adotar uma praça ou ajudar escola pública é algo que provoca entre impotência, riso e desdém.
Depois não entendem por que seus filhos só falam de automóvel, viagens a Disney ou roupa de grife.

Fax: (001-212) 873-1045
E-mail: gdimen@aol.com

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