São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 1997
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Relações promíscuas entre religião e ignorância

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Caso clássico de conflito entre ciência (ou erudição histórica) e as Escrituras, típico do século 18, é o da menina M., 11, grávida, cuja família desistiu do aborto já autorizado.
A família de M., analfabeta, negra, com renda mensal de R$ 100, foi convencida em poucas horas por um médico evangélico, pelo padre de Sapucaia (RJ), por católicos e protestantes da cidade e outros devotos de plantão a não permitir que a filha, grávida de 4 meses depois de ter sido estuprada por um lavrador, faça o aborto.
Caso impressionante, escandaloso pelo que revela do arcaico oportunismo da ideologia religiosa sobre a grande massa pobre e desqualificada, sempre devota e supersticiosa.
No princípio do século 18 também era assim, o campesinato permanecia fora do alcance de qualquer linguagem ideológica que não se expressasse em termos da "Sagrada Escritura" ou mesmo dos deuses e espíritos mais antigos que ainda se escondiam sob a fachada cristã, diz o historiador.
Até mesmo o juiz que autorizou o aborto de M. -e que se revelou espírita kardecista- lamentou a lei e o direito da menina de fazer o aborto.
Mas é claro que o campesinato dos dias atuais não é tão ingênuo quanto o do século 18.
O próprio pai de M., apesar de analfabeto, agiu como um livre pensador quando se decidiu a ir procurar a Justiça para fazer o aborto de sua filha.
É claro que o pai e a mãe de M. não foram convencidos pela ladainha evangélica do médico (nem mesmo por sua avaliação "científica" sobre a ausência de riscos na gravidez e no parto da menina).
Nem foram convencidos pelas Escrituras do padre. Muito menos pelas supostas chamas do inferno onde arderiam caso se decidissem pelo aborto -no inferno eles já vivem, com seus R$ 100 por mês.
Os pais de M. foram convencidos pela "ajuda" que os devotos de plantão ofereceram à família. Os televisores, as roupas, a comida, as geladeiras e... dinheiro é que os convenceram. O pai queria tudo menos problema, menos uma boca extra para alimentar.
Evidente que as igrejas, os católicos, os protestantes de todo tipo, os religiosos em geral precisam, para a subsistência de seus credos, manter essa relação promíscua com a ignorância das classes mais baixas.
A Igreja Universal do Reino de Deus, que vende "fé" aos analfabetos, com juros extorsivos e correção monetária, em nome de "Jesus", o islamismo de um Farrakhan nos Estados Unidos, que faz o mesmo "em nome de Alá", são apenas a face mais agressiva do caráter mercantilista das religiões.
O filme americano "Ruth em Questão" (1996), de Alexander Payne, trata de um caso semelhante ao da menina M.
Só que Ruth tem 30 anos, é drogada, prostituída e está em seu terceiro aborto.
Na tentativa de convencê-la a não abortar ou a perseguir seu direito de fazê-lo, organizações pró e antiaborto oferecem-lhe dinheiro.
Ruth finge que aceita, pega o dinheiro e foge da clínica onde estava internada para abortar ou não abortar. Pena que M. não tenha feito o mesmo.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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