São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 1997
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Knussen traz Stravinski pouco conhecido

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é tão frequente quanto poderia ser, mas vez ou outra alguém vai lá e remexe no baú de tesouros de Igor Stravinski (1882-1971). Desta feita, quem teve a feliz idéia foi o compositor e regente escocês Oliver Knussen, reunindo num CD três peças raras, de três momentos muito distintos da carreira do maior compositor do século.
"Faun i Pastuska" ("O Fauno e a Pastora"), uma suíte para mezzo-soprano e orquestra, consta oficialmente como "Opus 2", mas foi escrita em 1906, antes da "Sinfonia Op. 1". Baseada em versos de Púchkin, a suíte está tão distante da "Sagração da Primavera" (1913), tão presa ainda ao século 19, quanto, num outro extremo, a "Ode", de 1943, que completa o disco.
Esse é o Stravinski aluno de Rimski-Korsakov, encantado com Tchaikovski e Glazunov e tentando, ainda com alguma timidez, fazer um lugar para si ao lado dos mestres.
São três lindas canções, não especialmente originais, mas nem por isso menos interessantes, e lindamente cantadas em russo por Lucy Shelton.
O encantamento de Tchaikovski jamais deixou de ter efeito sobre Stravinski, em que pese sua revolução na década de 1910 em Paris, escrevendo música sobre outras bases quase inteiramente novas. Uma posterior conversão ao "neoclassicismo" (termo ruim, virtualmente um abuso, para um trabalho extraordinário de apropriação do passado) pode ser melhor reavaliada hoje do que na época, quando a militância vanguardista era capaz de atacar até seus maiores criadores.
Não há exemplo mais consumado do apreço pessoal de Stravinski pela tradição abandonada do que o balé "Le Baiser de la Fée" ("O Beijo da Fada"), composto para a companhia de Ida Rubinstein, em 1928.
Terceira composição mais longa na obra inteira do autor, só perdendo para "Oedipus Rex" e para a ópera "The Rake's Progress", a partitura toma algumas miniaturas para piano de Tchaikovski como ponto de partida para 43 minutos de música. O efeito somado do conjunto, hoje, é estranho. Visto de longe, pode ser decepcionante para os que esperam o mesmo vigor de Petruchka, do "Pássaro de Fogo" ou, para não ficar só na primeira fase, de outra obra-prima de energia concentrada, como a "Sinfonia dos Salmos".
Mas ouvindo de perto, com menos pressa, não se pode deixar de admirar a invenção delicada e o refinamento supremo dessas danças -nem puro pastiche nem simples ironia, mas alguma outra coisa, filtrada pelas nuances de um Stravinski em clima de noite de verão. A orquestra de Cleveland, antiga criatura de Pierre Boulez, toca Stravinski como ele merece: como um grande mestre do passado, esse "passado" que, na música, é uma forma especial do presente.
Nos anos 40, Stravinski tentou a sorte, sem nenhum sucesso, pelos estúdios de Hollywood. O segundo movimento de sua "Ode", por exemplo, foi concebido como cena de caça para o filme "Jane Eyre", com Orson Welles.
Rejeitada pela produção, a "Écloga" foi incorporada, posteriormente, à "Ode", uma encomenda do maestro Koussevitsky, em memória de sua esposa. Com ecos da "Sinfonia para Instrumentos de Sopro" (em memória de Debussy), a "Ode" é um estudo sereno da inexpressividade, em tons surpreendentemente expressivos para um compositor que afirmava que a música é incapaz de expressar coisa alguma, exceto a si mesma.
Não se trata, então, do maior Stravinski, em nenhum dos três casos. Mas é uma satisfação especial passear pelas galerias laterais dessa obra enorme, variada e, na prática, ainda pouco conhecida. Vale lembrar que o mesmo Oliver Knussen já havia gravado, não faz muito, com a London Sinfonietta, outro CD com peças de Stravinski: "The Flood, Abraham and Isaac" e os "Requiem Canticles" (DGG). Seis peças ainda é pouco, mas quem sabe é só o começo, a caminho de 60 ou, ao menos, 16.
(AN)

Disco: Igor Stravinski - Le Baiser de la Fée e outras obras
Orquestra: The Cleveland Orchestra
Regência: Oliver Knussen Lançamento: DGG
Quanto: R$ 25, em média

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