São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 1997
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Pletnev 'chega a si mesmo' com Chopin

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mais um pianista? Mais Chopin? Já não se tinha o bastante? As perguntas são retóricas e somem da mente quando se escuta o novo CD de Mikhail Pletnev.
É seu primeiro recital como pianista na gravadora Deutsche Grammophon, para a qual já lançou quatro discos regendo obras de compositores russos (Rachmaninov, Tchaikovski, Prokofiev e Rimski-Korsakov).
Há uma expressão em inglês, sem tradução exata para o português, que define o caráter desse disco: Pletnev "has come into his own" ("chegou a si mesmo").
Aos 40 anos de idade, com vários prêmios nas costas e uma agenda internacional de concertos, tendo também gravado alguns CDs memoráveis, como o disco duplo com sonatas de Scarlatti (Virgin Records, 1995), ele atinge outro patamar com seu Chopin e passa a habitar o céu da música, na companhia dos grandes.
Paradoxo
"Existe um paradoxo no fundo do estilo de Chopin, na sua combinação inesperada das tramas cromáticas da polifonia, baseadas numa experiência profunda da música de Bach, com um sentido de melodia e um modo de sustentar a linha melódica derivados diretamente da ópera italiana."
O diagnóstico é do musicólogo Charles Rosen, em seu livro "The Romantic Generation" (Harvard University Press, 1995).
Bach e Bellini: essa dupla improvável está por trás de uma peça como o "Estudo", op. 25/7, em dó sustenido menor, o estudo "do violoncelo" (que incorpora, aliás, quase sem alteração, uma melodia da ópera "Norma").
Pletneve é um mestre, aqui, da "heterofonia" em Chopin, a presença da mesma melodia em duas vozes ao mesmo tempo, mas fora de fase; e faz do sentimentalismo -intensificado, mas nunca caricatural- um instrumento refinado da verdade.
Outro estudo, em sol sustenido menor, op. 25/6, dá chance ao pianista de mostrar proezas dos dedos e da imaginação, com as cascatas de terças caindo sobre os ouvidos com a felicidade de Debussy e a fantasmagoria de Liszt.
Pequenos detalhes, hesitações calculadas de ritmo e um senso constante de animal vivo em cada frase, que respira nervosa ou sedutora, fazem de sua interpretação das valsas (op. 34/1 e 2 e op. póstumo) um possível ponto de comparação para as gravações definitivas de Dinu Lipati (1917-50). Essa última frase não foi escrita levianamente e dá a medida da qualidade de Pletnev.
Seu maior fôlego fica reservado para a "Fantasia op. 49", que abre o disco e, especialmente, para a "Sonata nº 3, em Si Menor".
Referência
Não há escassez de gravações dessas obras, mas a leitura de Pletnev passa a ser, de pronto, uma referência.
Há um momento em que a compreensão da música passa de "brilhante" para um outro plano, que as hipérboles não são capazes de definir sem falsidade.
André Gide falava de Chopin como o mais puro dos compositores, o que não é fácil de justificar. Mas Pletnev tocando a "Sonata" faz pensar na eloquência não da música pura, mas da pura música, renascida no mais impuro dos instrumentos: o pianista.
A música de Chopin passou algumas décadas, até meados dos anos 80, praticamente restrita à admiração dos próprios pianistas, que nunca o abandonaram, mas pouco escutada pelos ouvidos que pensam a música.
Pianistas como Pletnev e musicólogos como Rosen já o resgataram, agora irreversivelmente, para o panteão dos compositores que contam no nosso tempo.
Quanto mais se escuta e quanto mais se estuda Chopin, mais ele parece vital para os interesses atuais: heterogêneo, ambivalente, misturando estilos e gêneros (e sexualidades), num idioma a uma vez só público e privado. Ele é um enigma de reticência, nas dobras do espetáculo.
Nosso gosto, hoje, parece afinal pronto para ouvir Chopin e está tendo o benefício de encontrar intérpretes à altura, como Pletnev, Kissin e Pollini.
O ano de 1996 fechou com o disco maravilhoso de Maria João Pires, a integral dos "Noturnos", de Chopin (também da DGG). 1997 se encerra com o Chopin de Pletnev. Boa sorte, 1998: mas o próprio Pletnev anuncia que está preparando outros discos -Beethoven, Liszt, Prokofiev-, e isso, em si, já é um alento para o ano novo.
(AN)

Disco: Recital Chopin: Fantasia op. 49, Sonata nº 3 e outras peças
Pianista: Mikhail Pletnev
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 25, em média

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