São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 1997
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Duvido, logo...

ANDRÉ LARA RESENDE

Há temas que me incomodam de tal forma que evito ler a respeito. E não é fácil, são quase sempre temas que permanecem com alguma insistência no noticiário, são comentados em toda parte. É o caso da menina de 11 anos que, estuprada, engravidou. Foi-lhe concedida autorização judicial para o aborto. A família é paupérrima. Pressões de grupos contrários ao aborto terminaram por convencer seu pai de que seria melhor levar adiante a gravidez.
Acho que esse é o resumo sucinto do ocorrido. Digo acho, porque não li uma única linha do noticiário específico sobre o assunto. Não me vanglorio disso. É pura covardia, reconheço. Não pude, entretanto, escapar de ler sobre o tema por vias indiretas, nos artigos mais distintos, e de ouvir comentários e discussões.
Chego aqui e ainda tenho dúvidas se quero realmente tratar do assunto. Mas vamos em frente. Tomo coragem motivado pelas reflexões do livro de Hannah Arendt "A Condição Humana", que só recentemente fui ler. É desses livros tão fundamentais que só não me irrito de não tê-lo lido antes porque, muito provavelmente, teria-me faltado maturidade para compreendê-lo.
Segundo Arendt, no mundo moderno, a vida é o valor supremo. Ao contrário do mundo clássico, onde a vida pública, o heroísmo e a imortalidade em vida eram a referência, a valorização moderna da vida deve-se, em grande parte, ao cristianismo. A "boa novidade" da imortalidade da vida individual inverteu a antiga relação entre o homem e o mundo. Elevou o que há de mais mortal, a vida humana, ao privilégio da imortalidade, até então exclusividade do universo.
O cristianismo significou uma revolução da esperança para os que se consideravam inapelavelmente condenados. Esperança de uma imortalidade que eles nunca ousaram imaginar. Em contrapartida, o impacto sobre o valor, a honra e a dignidade da política foram terríveis. A aspiração à imortalidade na vida pública, tomada por mera vaidade. Toda glória que o mundo pudesse vir a conceder ao homem, mera ilusão, dado que o mundo passara a ser ainda mais mortal do que o próprio homem. A busca da imortalidade nesse mundo perdeu sentido, posto que a vida, ela mesma, era imortal.
A retração da vida pública foi radicalizada pela dúvida filosófica moderna da capacidade de o homem vir a aprender qualquer outra coisa que a si mesmo. A possibilidade de que nossa única certeza seja a de que existimos levou a uma introspecção radical: o homem moderno só se interessa por si mesmo. Daí ao atualíssimo princípio da busca irrestrita da felicidade é um passo.
A filosofia moderna é a filosofia da dúvida, essencialmente, uma teoria do conhecimento e da psicologia. Seu impacto sobre a fé foi devastador. A tese de Hannah Arendt é que a vida como bem supremo, como valor sagrado, entretanto, sobreviveu à laicização. Se o egoísmo moderno fosse, como se pretende, uma busca exclusiva do prazer, rebatizado de felicidade, não poderia lhe faltar, como de fato falta, a defesa radical do suicídio. A vida individual continua a ser a norma suprema.
Não deve, portanto, surpreender que o aborto e o suicídio sejam os dois temas mais polêmicos e angustiantes da atualidade. O direito à felicidade individual, a norma de comportamento derivada da dúvida filosófica moderna, choca-se com o princípio remanescente da revolução cristã, a vida como bem supremo.

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