São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 1997
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O campus da USP e o isolacionismo

ERNEY PLESSMANN CAMARGO

O novo reitor da USP anunciou que estudará a reabertura do campus à população. É um bom começo e um bom momento para analisarmos o tema em função da história das universidades, não dos conflitos do cotidiano.
Há uns 30 anos, ouvindo conferências no Collège de France sobre a nascente biologia molecular, notei a presença assídua na platéia de um grupo de "clochards" (mendigos), em seus andrajos e com a inseparável garrafa de vinho. Bem-comportados, aplaudiam ruidosamente cada conferencista.
Perguntei a André Lwoff se as moléculas seriam a nova musa dos "clochards". Com a serena ironia de um Prêmio Nobel, ele me respondeu, colocando a mão sobre o coração: "Não, 'monsieur Camargô'. A musa deles é o nosso calor".
Em verdade, eles se abrigavam do frio hibernal; mas o importante é que, durante séculos, jamais ocorrera a alguém tentar impedir sua presença, como a de qualquer outra pessoa, ali ou no prédio da velha Sorbonne, ao qual o acesso sempre fora livre.
É possível que esse acesso irrestrito pareça exagerado, permissivo, nestes nossos dias de insegurança e vandalismo. Mas é bom que alguns lugares da Terra preservem os "exageros", para nos lembrar das origens e costumes da "instituição universidade".
Quando, há dez séculos, o mister da transmissão do conhecimento começou a migrar dos monastérios para as cidades, ele se espalhou, em Paris, por cômodos, casas, tavernas e até estábulos do que viria a ser conhecido como "Quartier Latin", devido à língua usada pelos estudantes.
Assim nasceu a Universidade de Paris. Por muito tempo, em todo o mundo, as universidades se infiltraram pelas cidades que as albergavam, sem que se soubesse onde começava uma ou terminava a outra.
Creio que foram as ciências experimentais, com equipamentos e instalações especiais, que definitivamente obrigaram as universidades a reorganizar seu espaço físico. Para minorar a reclusão dos laboratórios, criaram-se ao seu redor grandes espaços e jardins.
Por meio de soluções paisagísticas atrativas, os campi universitários preservaram os vínculos originais das universidades com as cidades-mães. Os modernos campi norte-americanos e o próprio campus da USP foram concebidos dentro desse espírito.
A saudável convivência das populações com suas universidades e o papel destas na preservação da cultura e dos conceitos de liberdade e cidadania são um dos traços mais marcantes das democracias modernas. Fechar as universidades ou cortar seus vínculos com a população é sempre um dos primeiros atos de qualquer regime totalitário.
Foi assim em 64: entre os primeiros cassados estavam professores universitários. Mais tarde, no Rio, os militares diligenciaram a mudança da UFRJ da urbana e bucólica Urca para o remoto "fundão". Mas o campus da USP nem os militares ousaram murar.
Procurar por todos os meios interagir com as cidades-sede sempre foi prioridade dos administradores universitários americanos. Por quê? A razão comezinha é que, se fechassem os campi, os "tax payers" lhes assegurariam uma curta carreira. A razão importante é que é crucial para a vida de uma universidade que ela conviva, sob todas as formas, com a sociedade. Isso faz parte de sua essência: isolar-se é negar-se.
Além disso, as universidades precisam de alunos e professores, os melhores possíveis. Para atraí-los, a universidade deve ser competente e conhecida, mas também bonita, cordial e amada. Precisa insinuar-se na vida das pessoas e cativá-las.
As melhores universidades americanas fazem de tudo, desde abrigar notáveis orquestras sinfônicas até poderosos times de basquete e futebol americano, para seduzir a população e recrutar os jovens.
Claramente, foi o conjunto de atrativos das universidades -aí incluída a sua importância para o progresso da nação e do indivíduo- que fez com que, neste século, o crescimento da população universitária nos EUA fosse 35 vezes maior que o crescimento da população em geral.
Problemas operacionais sérios do campus da USP, como segurança e vandalismo, certamente precisam de solução. Mas não seria estranho às funções da universidade ensinar também convívio social e respeito ao patrimônio público.
O que não podemos é permitir que esses problemas se interponham entre a USP e sua grei. A ideologia que nutre o isolacionismo não pertence às origens universitárias e não respeita a essência da instituição universidade.

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