São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 1997
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A Polícia e o mito da paz

ANA SOFIA S. DE OLIVEIRA

Quando o assunto é segurança pública, duas concepções surgem logo: a criminalidade é uma doença, um câncer, que deve ser extirpado do corpo social. À polícia incumbe a tarefa de acabar com a criminalidade e restabelecer a paz. São duas concepções equivocadas.
Desde o início do século, as escolas criminológicas e sociológicas avisam: a criminalidade é um fenômeno normal. A sociedade é conflitiva. A idéia de ordem social maculada só existe em uma visão maniqueísta, cruel e equivocada.
De fato, não há sociedade sem crime. Acabar com a criminalidade é, pois, meta inatingível. O que é possível é mantê-la em níveis aceitáveis, que serão necessariamente coerentes com a realidade social.
E essa tarefa não é só da polícia. Qualquer manual de direito penal ou de criminologia diz: as instâncias formais de controle social -a polícia, o Ministério Público, o Poder Judiciário, o sistema penitenciário- atuarão quando as informais -a família, a escola, a igreja, o clube, a comunidade de bairro- falharem.
Na prática, percebe-se que as diversas instâncias são tratadas (e tratam-se) como compartimentos estanques, isolando-se umas das outras, como se cada uma tivesse um objetivo diverso.
O homem moderno recebeu a herança da lógica cartesiana, do pensamento cientificista. Aprendeu a dissecar o objeto de sua investigação para compreendê-lo. Tornou-se um especialista em partes, mas cego em relação ao todo. Sérios problemas econômicos, sociais, ecológicos surgem daí.
O cientista que separa a borboleta em partes observa com precisão as asas, mas não vê o movimento delas, não observa o vôo: a parte fora do todo perde sua identidade. É preciso resgatar a visão do todo, encontrar na realidade a fundamentação, a legitimação das práticas das instâncias formais.
A polícia é o símbolo mais visível do sistema oficial de controle social. É a polícia que toma a decisão mais importante no processo de seleção da clientela do sistema penal, que recolhe, no universo da população, a matéria-prima que será colocada na esteira rolante da indústria em que se converteu o sistema penal.
Essa atuação, porém, é profundamente marcada por estereótipos, e a seleção recai prioritariamente sobre as "caras de prontuário", na expressão do penalista argentino Zaffaroni.
A essa atuação discricionária, marcada por estereótipos, some-se a expectativa social. A expectativa da comunidade e dos próprios policiais é de que a polícia vença a criminalidade: afastem os criminosos do nosso convívio e voltaremos a ter paz.
Errado! O crime é um problema de todas as instâncias formais e informais, e não só da polícia. Uma sociedade que não se interessa pelas raízes do problema do crime, que pensa que sua segurança será maior na medida em que for maior o número de criminosos atrás das grades, que não consegue desenvolver sentimentos de solidariedade, que permanece indiferente, é cruel, insensível e merece a taxa de criminalidade que tem.
Sem um diálogo entre as diversas instâncias formais e informais, sem crítica e autocrítica constantes, sem reconhecer cada uma delas, suas limitações, sem buscar enxergar o todo, o nosso sistema repressivo vai continuar combatendo a criminalidade que ele próprio reproduz e reproduzindo a criminalidade que pretende combater.

Ana Sofia Schmidt de Oliveira, 34, é procuradora do Estado e membro do Conselho Penitenciário.

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