São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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Disciplinando os disciplinadores

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Os Estados Unidos e o Fundo Monetário Internacional coordenaram, em meio às festividades natalinas, um pacote de emergência de US$ 10 bilhões destinado a impedir a moratória coreana. Papai Noel vacilou, mas não faltou. Esta ação de emergência provocou, na sexta-feira, uma forte recuperação do won (valorizou-se 20% em relação ao dólar), alentando, ademais, o principal índice da Bolsa de Seul, que deu um salto de quase 8%.
O governo americano e o Fundo vinham subestimando a gravidade dos problemas financeiros que ora afetam as economias da Ásia. Duas impropriedades foram amplamente divulgadas nos primeiros dias da crise. Impropriedade nº 1: as declarações do diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, dizendo que "o modelo asiático já cumpriu o seu papel e está superado". Mais do que qualquer outra coisa, o globalcrata quis dizer que se tratava da crise de um modelo de desenvolvimento, com muito Estado, bancos emprestando adoidado, economias fechadas e outras mazelas do gênero.
A chamada mídia internacional e, naturalmente, a cabocla gastaram tinta, papel e energia humana para especular sobre as consequências do destino merecido dos imprudentes. Como sempre, alguns dias depois, quando as empresas e bancos americanos começaram a antecipar resultados menos gloriosos, fazendo o Dow Jones dobrar os joelhos, os papalvos deram-se conta de que o estrago era universal. Mais americano do que universal, como declarou, nesta semana, voltando da Ásia, o economista David Hale a seus clientes do Departamento de Estado e do Pentágono. Ele não deixou por menos: "A velocidade e ferocidade desta crise são estonteantes".
Impropriedade nº 2: o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Robert Rubin, no alvorecer da turbulência cambial e financeira, veio a público para ameaçar: não gastaria um níquel para salvar investidores e credores privados. Como a trapalhada coreana é fruto da ação de investidores e credores privados, não se sabe bem o que o secretário Rubin pretendia dizer. Os fundamentos fiscais estavam em ordem, como atestam os dados do Fundo Monetário, que, diga-se, poucos meses atrás derreteu-se em elogios à situação macroeconômica do combalido Tigre, alongando-se nos encômios à taxa de poupança agregada.
Os analistas mais badalados da finança globalizada parecem espantados com o caráter privado da crise. É possível, no entanto, adivinhar o que passa nas cabeças como a do secretário Rubin: os mercados privados são "eficientes" e, portanto, os agentes usam de forma adequada a informação disponível e decidem racionalmente. Sendo assim, os episódios de descontrole financeiro deste porte só podem ser explicados por desmandos dos governos.
Diante da realidade macroeconômica coreana, estes senhores sempre podem encontrar remédio para a fragilidade de suas hipóteses atribuindo a catástrofe financeira em curso às relações promíscuas entre os bancos, os conglomerados ("chaebol") e o governo na Coréia. Um regime de crédito dirigido e ativo sustentou, de fato, o espetacular e bem-sucedido processo de industrialização e de crescimento econômico da Coréia (assim como de Taiwan) durante as três últimas décadas.
Os dirigentes e a tecnocracia desses países inspiraram-se, com certeza, no desempenho de seu vizinho, o Japão, que uma década antes, já nos anos 50, ironicamente graças à guerra das Coréias, tinha conseguido livrar a sua economia das reformas liberais do general MacArthur. Mantendo a estrutura empresarial de grandes conglomerados e de bancos associados, a protegida economia japonesa em 40 anos transformou-se de produtora de tecidos baratos e de rádios Spica numa economia de US$ 5 trilhões, a segunda do planeta. A Coréia multiplicou por quatro a renda real per capita entre 1960 e 1985, hoje exibindo cerca de US$ 9.000 correntes. Seria preciso algum contorcionismo ideológico para qualificar de fracasso tais façanhas.
É difícil sustentar, no entanto, o ponto de vista de que a gestão econômica nesses países, particularmente a forma de financiamento da economia, tenham respeitado as normas de impessoalidade, transparência e eficiência microeconômica. Muito ao contrário: prevaleceram as prioridades dos Estados nacionais, perseguidas à custa de favorecimentos e arbitrariedades. No caso da Coréia essas tropelias eram praticadas pelo regime militar, sobretudo nos tempos do grande timoneiro da industrialização, o general Park Chung Rhee.
Apesar disso, a Coréia do Sul, Taiwan e o Japão, nos tempos da Guerra Fria, sempre foram tratados como baluartes do mundo livre na Ásia. Por isso, os Estados Unidos, durante um bom tempo, fizeram vista grossa para o nacionalismo econômico, o que incluía políticas industriais seletivamente protecionistas e fortes incentivos às exportações.
Além de cadeia e bastonadas para os opositores políticos na Coréia e em Taiwan, deslavada corrupção de próceres políticos no Japão, os americanos toleraram -sempre em nome da liberdade- todas as violações possíveis e imagináveis das boas regras do livre mercado. Não só toleraram, como abriram seus amplos ricos mercados para a invasão dos produtos japoneses e coreanos.
A política econômica de Reagan no início dos 80 -com seu dólar supervalorizado, os enormes déficits orçamentários e nas contas de comércio e a Guerra nas Estrelas- foi chuva criadeira para os países da Ásia, em particular para Japão, Coréia e Taiwan. Esse foi o período dos grandes superávits comerciais, da internacionalização dos "chaebols" coreanos como Samsung, LG, Daewoo e Hyunday, do aparecimento dos bancos japoneses no cenário das finanças globais, responsáveis pela gestão das enormes reservas financeiras acumuladas ao longo dos anos.
Desde meados dos anos 80, porém, depois do famoso acordo do Plaza, quando os Estados Unidos resolveram reverter a brutal valorização do dólar que já havia causado danos quase irreparáveis à sua indústria, foi dado um sinal claro de que a festa estava prestes a acabar. Os japoneses foram obrigados a engolir uma forte valorização do iene, o que, por um lado, afetou suas exportações para a área de predominância da moeda americana e, por outro, causou sérios prejuízos para os bancos, corretoras e seguradoras que carregavam em suas carteiras ativos em dólar.
Neste momento intensificam-se as pressões para a liberalização comercial e financeira do Japão e dos dois tigres asiáticos de segunda geração, Coréia e Taiwan. As investidas contra o protecionismo coreano e japonês datam já do final dos 70, envolvendo restrições voluntárias de exportação, quotas e sobretaxação de produtos com suspeita de preços subsidiados.
Na segunda metade dos 80, japoneses e coreanos -tanto por razões internas (acumulação de excedentes financeiros pelas grandes empresas japonesas que se tornaram aplicadoras líquidas) quanto externas (reservas em moeda forte e exigências dos Estados Unidos)- enveredaram pelos caminhos da abertura financeira e desregulamentação dos serviços financeiros.
A professora Meredith Woo-Cummings, da Northwestern University, em seu magistral artigo sobre a liberalização dos mercados na Coréia mostra que a internacionalização financeira, ao invés da maior eficiência na alocação de recursos, levou, isto sim, à especulação com ativos reais e financeiros, à aquisição de empresas já existentes, ao sobreendividamento e finalmente à fuga de capitais. Os bancos japoneses, acostumados com as operações de crédito "papai e mamãe" com as empresas, amparados pelas práticas de redesconto de seus respectivos bancos centrais, deitaram e rolaram nos mercados imobiliários, nas Bolsas de Valores e no financiamento dos Tigres de terceira geração.
Esses maus modos costumam terminar em agudas deflações de preços dos ativos sobrevalorizados, acompanhadas de forte desvalorização cambial e seguidas de prolongada crise financeira. A questão se torna ainda mais delicada quando se sabe que essas posições estão muito alavancadas pela expansão do crédito bancário e, além disso, as ações ou imóveis valorizados são usados como garantia para a contratação de mais empréstimos.
Nessas situações, a fuga dos ativos inflados e cujos preços estão despencando é, ao mesmo tempo, uma fuga da moeda local em direção aos ativos financeiros denominados na moeda realmente forte que servia de referência, ou seja, o dólar. Nas atuais circunstâncias, são os títulos do governo americano que servem de refúgio seguro para o capital aventureiro, depois das incursões especulativas.
O governo dos Estados Unidos e o FMI, neste momento, não têm outra alternativa senão sancionar as expectativas dos mercados de que os desequilíbrios incorridos por administradores de carteiras e grandes financiadores serão amparados por dinheiro oficial. A alternativa é a contaminação de outras praças financeiras e o agravamento do crash global. Essa história de "deixa quebrar" é muito boa quando se trata do banco do vizinho.
Mais de que em qualquer outro período da história econômica recente, as políticas econômicas, mais especificamente as políticas monetárias, estão sobrecarregadas pelas tensões e desequilíbrios que nascem dos mercados financeiros e cambiais. As intervenções, destinadas a conter essas crises sistêmicas, criam inevitavelmente os chamados riscos morais, ou seja, os agentes tornam-se mais imprudentes e audaciosos quando incorporam em suas avaliações a possibilidade da intervenção "salvadora" dos bancos centrais. Para evitar que este tipo de intervenção de última instância seja frequente, estimulando a irresponsabilidade dos investidores, as autoridades têm de fazer retroceder a desregulamentação irresponsável e, sobretudo, colocar freios no capital livre e líquido.
Os basbaques da praça não se cansam de enaltecer as virtudes disciplinadoras dos mercados financeiros. Já está na hora de disciplinar os disciplinadores.

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