São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Na proa da história do cinema

CARLOS ADRIANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cidadão do mundo do filme, Alberto Cavalcanti iniciou sua aventura cinematográfica na proa, de um porto de partida privilegiado: a vanguarda francesa dos anos 20. Também deixou seu legado em outro momento decisivo do cinema, o movimento do documentário britânico dos anos 30.
Em 50 anos (1926-76), realizou 58 filmes e produziu outros 35, num périplo por França, Inglaterra, Suíça, Áustria, Romênia, Itália, Israel e Brasil.
Cavalcanti nasceu em 6 de fevereiro de 1897 no Rio de Janeiro. Foi para Paris em 1920, época em que iniciava a "primeira avant-garde". Chamada por Langlois de "impressionismo francês", formava um coro de cineastas singulares, de vocação utópica, em busca de um caleidoscópio de imagens planetárias e plurais, da "poesia de esteta", da "música muda": Marcel L'Herbier, Abel Gance, Louis Delluc, Germaine Dulac, René Clair e Jean Epstein.
Cavalcanti começou no cinema como cenógrafo de L'Herbier, nos filmes "Réssurrection" (1922), "L'Inhumaine" (1924), "Feu Mathias Pascal" (1925); com Delluc, fez "L'Inondation" (1924). Sintonizado, elaborou peças geométricas e abstratas.
Como diretor, seu primeiro filme foi "Le Train Sans Yeux" (1926). A seguir, fez nome como autor da vanguarda, criando narrativas não-lineares, em diapasão musical, de puro ritmo, combinando ironia, observação do real e imaginação surreal: "Rien Que les Heures" (1926), composição de contrastes sociais e estéticos que inaugurou a voga das "sinfonias da cidade" (Vertov, Ruttmann, Ivens), "En Rade" (1927), pós-utopia numa vila portuária, "Vous Verrez la Semaine Prochaine" (1929), paródia de anúncios publicitários, e a obra-prima "La P'tite Lilie" (1927), proeza de poesia.
Em 1933 mudou-se para Londres, ingressando na Unidade de Filmes do General Post Office como instrutor, substituindo Robert Flaherty. No GPO, órgão governamental dos correios, Cavalcanti tornou-se referência nuclear na escola documental britânica animada por John Grierson. Prolongando ali seu trabalho da vanguarda, conjugou propaganda institucional, sentido audiovisual e insight social, num papel inovador e coerente com a prática do grupo (trazer à tela o tempo presente, com reportagem, ou poesia, e lucidez estética). Polemizou com Grierson sobre créditos (posteriormente) e nomenclatura (propondo trocar o termo documentário por neo-realismo). Formou diretores como Len Lye, Basil Wright e Humphrey Jennings.
Foi produtor, diretor, montador e engenheiro de som em vários filmes do GPO. Curioso por técnica e experimentação, deu primazia à pesquisa sonora. Para ele, "os sons (ruídos, vozes, músicas) formavam um contraponto com as imagens", como mostrou em "Night Mail" e "Coal Face" (1936). Vislumbrando seu potencial expressivo, sugeria o som não-sincronizado e o incógnito (irreconhecível, fora do contexto).
Engajado na urgência da história, fez "Yellow Caesar" (1941), primor mordaz de compilação de materiais para desconstruir a imagem de Mussolini. "Film and Reality" (1939-42) é outro notável filme de montagem, demonstrando sua ideologia e teoria do realismo.
Em 1940, foi para os Ealing Studios de Michael Balcon, onde marcou seu talento de produtor na empresa que buscava um filme britânico de qualidade. Fez "Went the Day Well?" (1942, baseado em Graham Greene), "Nicholas Nickleby" (1946, baseado em Dickens), "Champagne Charlie" (1944) e supervisionou os esquetes do terror sutil "Na Solidão da Noite" (1945), além de dirigir o epílogo do ventríloquo.
Constrangido a abandonar o acalentado roteiro de "Sparkenbroke", deixou a Inglaterra e aceitou o convite para dar conferências no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Então encarregado de organizar uma indústria de cinema nacional de nível internacional, foi a partir de 1949 breve produtor geral da Vera Cruz.
Após divergências com os capitalistas italianos, acusações de comunismo e intrigas sobre sua sexualidade, Cavalcanti voltou à Europa em 1955. Supervisionou os episódios de "Rosa dos Ventos" (1956), com direção de Joris Ivens, e realizou pioneiros filmes para a TV francesa entre 1969 e 75, como "La Visite de la Vieille Dame" (de Dürrenmatt). Um de seus últimos projetos, baseado no processo e martírio de Antonio José da Silva, foi retomado pelo diretor Jom Tob Azulay em "O Judeu" (1995).
Autor de uma obra que trazia por orientação "o social, o poético e o técnico" com forma individual e visão universal, Cavalcanti concebia o cinema em ampla escala. Ironicamente, o último filme do cosmopolita (por adoção ou imposição?) Cavalcanti foi feito no Brasil (a terra ingrata que em geral o renegou). Apropriadamente, é seu filme-testamento. "Um Homem e o Cinema" (1976) é antológico por ser uma antologia de seus trabalhos e por tudo o que mostra ao atravessar a história do cinema.
O homem que viveu sob o signo do exílio e da errância permanentes morreu em Paris em 1982. Um de seus motes ainda ecoa, atual: "É o senso do verdadeiro cinema que necessita ser encorajado".

Mostra Cavalcanti
A Cinemateca Brasileira (r. Fradique Coutinho, 361, tel. 011/881-6542, São Paulo) está exibindo até quinta filmes dirigidos ou produzidos por Alberto Cavalcanti.

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