São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Pós-música: ouvir as pedras

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há alguns anos, sob o impacto do sucesso comunicativo do minimalismo americano, muitos supuseram que a música complexa decorrente das especulações dos compositores pós-webernianos tivesse deparado uma contradita fatal. O reducionismo dos veículos de massa e a inapetência coletiva para com a música não-tonal favoreceram, por certo, essa "ilusão de acústica".
Os caminhos da arte, porém, não se perfazem em poucos anos ou em poucas décadas. Nem são ditados pelo voto majoritário. E não seria crível que uma geração superdotada como o foi a de Boulez, Stockhausen, Nono, Berio, Maderna, Ligeti, Xenakis e tantos outros, depois do notável empreendimento crítico e criativo que operou a retomada da linha de experimentação e aventura a partir da liberação das vozes sufocadas de Webern e do Grupo de Viena, de Ives e Varèse, tivesse tão pouco fôlego e tão pouca consistência.
Não há dúvida que as arremetidas de Cage e de Feldman contra algumas ortodoxias européias tiveram um impacto revigorante e permitiram corrigir rotas e descortinar sendas imprevistas ao abrirem as janelas do caos e da indeterminação para a aventura do som. Mas foi o seu sucedâneo geracional -o minimalismo de marca tonalizante- que pareceu surgir como alternativa viável diante do impasse comunicativo tanto da música pan-serial quanto da sua antagonista dialética, a "chance music". Menos pelo mínimo, ainda que confortavelmente hipnótico, do que pela máxima complacência tonal. No entanto, apesar do rápido êxito de recepção (sempre suspeito, quando se trata de arte) e de alguma contribuição incidental, mormente com a provocação da tautologia molecular das obras de Steve Reich, em pouco tempo a música minimalista revelou a sua fragilidade, dilatando-se e diluindo-se no anedotismo discursivo das óperas grandiloquentes e dos sinfonismos ambientais.
Enquanto isso o próprio Cage, que por certos parâmetros inspirara esse radicalismo simplificatório, começava a mostrar-se interessado em obras qualitativamente mais complexas: "A superação das dificuldades. Fazer o impossível", proclamou ele na conferência "O Futuro da Música", divulgada no livro "Empty Words" ("Palavras Vazias"), em 1979. E criou, entre as "obras difíceis", iniciadas em 1974, os "Freeman Études", cuja segunda série, composta entre 1980 e 1990, Paul Zukofski, um dos maiores violinistas do século, chegou a considerar impossível de tocar, embora viesse afinal a ser interpretada e gravada por Irvine Arditti. Exemplar no sentido de dilatar as fronteiras do possível, o "Estudo nº 18" é dividido em ilhas sonoras que chegam a ter 37 diferentes ataques, cada qual com a sua dinâmica, num mesmo compasso. Irvine acabou executando os compassos dessa composição, aparentemente inviável, numa duração média de 2", ultrapassando as previsões do próprio compositor. Contraditor de Cage nos anos 50, Luigi Nono partilharia de semelhantes preocupações em 1983: "...ENTÃO SÃO POSSÍVEIS/ tantas mais possibilidades diversas e outras/ a colher justamente no até agora impossível".
Por outro lado, com as montagens de clicherias do belcanto das suas "Europeras" (1987-91) -que, em inglês, trocadilham provocativamente: "Your Operas", como que insinuando uma "extradição" sonora-, Cage ironizou a mania operística européia que pareceu contaminar os minimalistas e não deixou de afetar a própria vanguarda nas últimas décadas. De Stockhausen a Nono, passando por Ligeti, Kagel, Berio, Maderna, poucos foram os compositores europeus que não fizeram a sua "ópera", ainda que pensada em termos de criação não-ortodoxa ou crítica, até chegar à anti-ópera -"ópera negativa", "tragédia da escuta", como Nono batizou "Prometeo", em que não há nem encenação nem ação teatral e as raras palavras que atravessam seus sussurros musicais são ininteligíveis.
O próprio Boulez não deixou de pelo menos cogitar da idéia de ópera (pensou num texto de Genet). Ele, que dissera, certa vez, que era preciso explodir os teatros de ópera! Feliz ou infelizmente (felizmente, para mim) não cedeu à tentação. Em compensação, continuou criando seus diamantes sonoros, entre os quais duas pequenas obras-primas que só vieram a ser divulgadas em disco nos últimos anos: "Messagesquisse" ("Mensageseboço" ou, como prefiro traduzir, "Mensangensaio"), de 1976, e "Dialogue de l'Ombre Double" ("Diálogo da Sombra Dupla"), de 1982-85 (gravações da Erato, de 1990-91).
A primeira, uma peça curta, para sete violoncelos, na qual a prismatização das harmonias, a partir de uma célula-base, é transferida do instrumento solista para os demais e vice-versa, em varreduras de cordas tensionadas. A segunda, uma viagem por regiões não visitadas do universo sonoro, guiada pela melodia ondulatória (com inusitada sobreposição de trinos, trêmolos e vibratos), com a qual a clarineta, em registros e ataques de grande densidade timbrística, entra em diálogo com os sons pré-gravados do instrumento (a sua "sombra"), multiplicados estereofonicamente por seis alto-falantes. A clarineta é ligada por um microfone de contacto com a caixa de ressonância de um piano posicionado atrás do palco, cujas vibrações produzem a reverberação sonora característica da peça. Essas composições, que enfatizam a materialidade sonora, especialmente nas camadas timbrísticas, parecem sugerir, para além de conceitos e sistemas, um diálogo mais amplo com outras tendências recentes da música de invenção.
"Diálogos de sombras duplas" ocorrem também em obras como "...sofferte onde serene..." (1976) e "La Lontananza Nostalgica Utopica Futura" (1988-89), de Luigi Nono, em que piano e violino exorcizam os fantasmas sonoros de seus replicantes pré-gravados, num interagir de inteligência e intuição capaz de levar a novas percepções. Obras que privilegiam o timbre, integrando-se ao que Tristan Murail (no estudo "Scelsi De-Compositore") classifica como "um grande movimento da música ocidental, em que o timbre, antes insignificante com respeito à escritura, é recuperado, reconhecido primeiro como fenômeno autônomo e a seguir como categoria predominante -terminando quase por submergir ou absorver as outras dimensões do discurso musical, de sorte que as microflutuações do som (glissandos, vibratos, mutações do espectro sonoro, trêmolos...) passam do estado de ornamento ao de texto".
As últimas décadas têm assistido a um recrudescimento da experiência com os sons como sons. A reviravolta estética de Nono e as pesquisas que desenvolveu a partir dos anos 70 com vistas a um aprofundamento da audição de música liberada dos parâmetros convencionais de melodia, harmonia e ritmo; a descoberta, na década seguinte, de novos universos complexos como o dos precursores mantras infra-sônicos de Scelsi; o desenvolvimento da música "espectral" (baseada na exploratória dos harmônicos do som), de que constituem exemplo significativo os "plasmas sonoros" do rumeno Horatiu Radulescu; a revelação das polirritmias alucinantes das pianolas de Nancarrow -em cuja "complexidade polimétrica" Ligeti vê uma das contribuições básicas dos anos 80- e finalmente a recuperação, na década de 90, da tradição radical da vanguarda russa nas demolidoras rajadas de percussões e dissonâncias de Ustvólskaia, tudo isso parece entremostrar uma nova face das especulações musicais, que, longe de constituir um retorno a padrões mais convencionalizados, revitaliza as linhas experimentais que animaram as iniciativas dos anos 50. A "nova complexidade", de que é sintomática a microscopia "estrutural e escritural" de um compositor como Ferneyhough, assim como a "praticabilidade do impossível" patenteada nas "obras difíceis" do último Cage convergem também nessa direção. Antes assim. Depois de assistir à mais estupenda luta que a história da música já conheceu para ampliar o horizonte do conhecimento e da percepção auditivos, é preferível que o século termine não com um "gemido", mas com um "estampido". "With a bang, not with a whimper", na variante de Pound ("Canto 74") da famosa linha de Eliot.
Há, certamente, dúvidas e diferenças. Talvez o que separe o cerebralismo cristalino de Boulez das explorações topológicas de Scelsi, Nono ou Ustvólskaia, por diferentes que se configurem estes entre si, seja o amarramento do compositor francês ao conceito homogeizante de estrutura, ainda que ampliado pela opção controlada dos jogos aleatórios. O sempre inquieto e generoso Ligeti, com suas micropolifonias, poderia ser um ponto de interseção entre essas linguagens, já que ele, além de interlocutor de Scelsi, é confessadamente influenciado por Nancarrow e talvez se tenha contaminado também pelo radicalismo de Ustvólskaia -comparar o segundo movimento do "Concerto para Piano e Orquestra" (1985-88), na solidão fantasmagórica das intervenções de flautim e piano sobre um pedal de contrabaixos, com os ascéticos e desesperados disparates de flautim, piano e tuba do terceiro movimento da "Composição 3" (1971), de Ustvólskaia. As elucubrações sonoras de Scelsi e Nono a partir da microintrospecção do som, assim como os conglomerados ruidísticos da compositora russa tendem a deslocar da estrutura para a própria materialidade sonora o foco da experiência musical. Mas nas suas angustiadas sondagens nos limites da sonoridade há ainda mais. É, nesses compositores, tão intensa e tão dramática a indagação musical, tão poderoso o pathos ético da sua impostação, que as salas de concerto parecem, no mínimo, técnica e socialmente inadequadas para suas viagens interiores. Obras como essas não pedem aplausos nem bravos, mas meditação e silêncio. Não à-toa Ustvólskaia afirma que suas composições seriam melhor ouvidas num templo que numa sala de concertos.
Há qualquer coisa de incompatível na fruição dessas experiências-limite, vizinhas da inaudibilidade e da insuportabilidade física do som, como acepipes musicais de um refinado banquete sonoro, quando o que elas propõem não é uma festa auditiva, mas uma viagem acidentada pelas artérias labirínticas, minadas de explosivos sonoros, de sua metamúsica. Não se trata de obras-primas, mas de obras-traumas -consciência da consciência. (Semelhante incompatibilidade ocorre, por outro lado, com as obras-eventos e com as obras-difíceis de Cage ou com os silêncios sonorizados por Feldman, intervenções anticlímax que desestabilizam e provocam, sem nenhum aceno ao hedonismo auditivo.) Daí que algumas das recentes composições de Boulez, com toda a sua grandeza, tendam a ser assimiladas como jóias da modernidade pelo público mais sofisticado dos concertos, enquanto as dos outros compositores pareçam encontrar melhor acolhida nas catacumbas e casamatas artísticas, onde seus informes protestos espectrais ressoam entre as pedras, musgo e músculo da música.
Num belo texto de 1983 ("L'Errore Come Necessità"), afirma Nono: "O silêncio. É muito difícil escutar. É muito difícil escutar, no silêncio, os outros. Outros pensamentos, outros ruídos, outras sonoridades, outras idéias. (..) Em vez de escutar o silêncio, de escutar os outros, espera-se encontrar ainda uma vez a si mesmo. (...) Escutar a música. É muito difícil. Creio que hoje é um fenômeno raro. Escuta-se alguma coisa de literário, escuta-se o que foi escrito, escuta-se a si mesmo...". E conclui: "Risvegliare l'orecchio, gli occhi, il pensiero, l'intelligenza, il massimo di interiorizzazione esteriorizzata: ecco l'essenziale oggi" (despertar o ouvido, os olhos, o pensamento, a inteligência, o máximo de interiorização exteriorizada: eis o essencial hoje).
Em outro texto, da mesma época, a propósito da composição "Guai ai Gelidi Mostri" ("Ai dos Monstros Gelados"), em que se cruzam fragmentos espectrais dos "Cantos" de Pound com outros de Lucrécio, Ovídio, Nietzsche, Rilke e Gottfried Benn, insiste: "Infinita disponibilidade para o surpreendente, para o insólito, para colocar em discussão, ainda que na maior incerteza (certeza na incerteza), na maior 'verzweifelt Unruhe', inquietude desesperada ('Ruhe in der verzweifelten Unruhe') -a procura infinitamente mais importante que a descoberta. Escutar! como saber escutar as pedras brancas e vermelhas de Veneza ao nascer do sol -como saber escutar o arco infinito das cores sobre a laguna ao pôr-do-sol". Suas últimas obras mobilizam os recursos menos convencionais, articulando a microtimbrística de instrumentos e vozes com "live eletronics", até a fímbria do inaudível, em prol da regeneração da escuta, a partir do som-silêncio, do som-sopro, do som-voz, do ur-som -o "som das pedras"!
Descontadas as discordâncias projetuais ou idiossincráticas, pode-se dizer que há um denominador comum nessas aventuras sonoras que vão da ultra-sistematização à não-sistematização do som, autonomamente considerado, como gerador celular de experiências perceptivas, reafirmando o prestígio da linguagem complexa, fragmentária e antinormativa frente ao discurso redundante das pós-medianias e dos neo-modismos regressivos.

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