São Paulo, terça-feira, 4 de fevereiro de 1997
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Novos prefeitos do Brasil precisam ir à Bahia

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Você já foi a Bahia ver o Projeto Axé? Não? Então vá! Todos os prefeitos do Brasil deviam ir ver o Projeto Axé em Salvador.
Vai lá, Conde; vai lá, Pitta; vai lá fulano e sicrano... Vai lá PFL, vai PT. Todos precisamos de uma aula de administração pública, de uma aula de imaginação contra a burrice burocrática.
Milhares de crianças de rua já foram salvas, integradas na cultura da cidade. Talvez só em Salvador pudesse ter nascido essa idéia. A música, os rituais, o sincretismo, tudo leva a uma liberdade maior de invenção. Do chão, saiu esse sal da África, esse "axé", há 400 anos.
Os intelectuais que realizaram esse projeto enxergaram o óbvio: nenhuma fórmula antiga resolve um problema novo. Só a imaginação dá conta do absurdo. O absurdo de crianças de 4 anos vagando pelas ruas não pode ser atacado por vias "humanistas" tradicionais. Foram os meninos de rua que ensinaram aos educadores "como" deviam ser ajudados. A criança é que pergunta: "Quem é você que quer me ajudar?" O educador do Projeto Axé começou questionando o próprio desejo de fazer o bem. Todo mundo que fala da miséria não vive nela. Os que vivem não falam. Ninguém sabe bem por que é contra a miséria. Em geral, tecemos uma colcha de retalhos feita de culpa, caridade, horror estético, mania de limpeza, obsessividade, medo, ódio aos pobres, amor a si mesmo, militância burra ou até mesmo fascismo purificador. Ninguém pergunta ao miserável como quer ser tratado. O miserável é nosso objeto; não um sujeito.
Miseráveis não têm desejo. Para eles, bastam os galpões de abrigo, as sopas, os banhos de desinfecção, a invisibilidade.
Temos de tirá-los das ruas por uma questão de urbanismo. Se não víssemos os pobres, tudo bem, pensa nossa hipocrisia. Mas o que aflige nossos corações burgueses é que os meninos de rua teimam em sair da periferia e das favelas longínquas e vêm passear nos centros. Eles são a miséria fora do lugar. Tudo fica imperfeito com sua presença. Os mendigos velhos são fáceis de engolir: "Ahhh... Vagabundo, bêbedos... Acabou assim", dizemos.
Já o menininho te olhando do meio-fio, é mais difícil. Com os mendigos velhos, a culpa é deles. Já com os meninos de rua, a culpa é nossa. Os meninos de rua desorganizam nossa paisagem. Com os meninos de rua, ficamos muito expostos. Eles nos ameaçam com sua fragilidade. O menino de rua se acha normal. Nós é que nos sentimos anormais em sua presença. Ele vira um problema existencial para nós.
A razão suja
Diante desse absurdo que nos olha em todos os sinais de trânsito, em cantos de vitrine, em portas de igreja, o Projeto Axé jogou fora o totalitarismo purificador das soluções higiênicas. Jogou fora a piedade, a caridade, a linearidade dos processos e partiu para a invenção.
Sacaram: 1) Não adianta esperar o todo para resolver a parte. 2) Não adianta contar com a sentimentalidade branca; só a miséria ensina os caminhos. 3) Não adianta trabalhar sem imaginação; só com atalhos ("by passes"). 4) Contra a resistência "molar", só as ações "moleculares". 5) Não adianta contar com a velha bondade positivista e isolacionista. 6) É preciso incluir as modernas descobertas da ciência social na prática.
O Projeto Axé não tira ninguém das ruas, como quem esconde a sujeira. O Axé vê a miséria como o outro lado de um erro. É uma psicanálise de campo, despertando nos meninos pobres a idéia de que eles podem desejar, ter projetos e não serem apenas escravos fugitivos do desejo dos outros.
"Quem sou eu? Que quero eu?", perguntam os meninos que encontraram o Axé. Eles têm de nos ajudar a salvá-los, porque eles são a "parte suja". Por meio deles entendemos a crise de nossa razão.
Jovens sem inocência
Uma visita ao Projeto Axé me deu a vontade de ter sido educado por eles. Os meninos de rua que fazem roupas, tecidos, cerâmicas, estamparias, estudam, lêem, fazem teatro, dança, têm os olhos mais sábios e fundos que os meninos caretas e protegidos das escolas particulares. Essas crianças são jovens, lindas, esperançosas, mas não são inocentes. Já beberam a água suja dos rios.
Os educadores todos são profissionais recebendo salários decentes, sem cristianismos fáceis nem bondades autoritárias.
Não há lugar também no Axé para "basismos" e militâncias tradicionais. Ninguém está ali para fazer daquilo uma plataforma para nada. Aquilo é aquilo mesmo, o fim é a coisa mesma. Não há nenhum fim além do desejo de fazer viver.
O custo de uma criança no Axé por mês é dez vezes menor que o custo de uma criança no corredor kafkiano da burocracia e nos depósitos sujos de menores.
Antes de mais nada, o Axé é uma boa idéia! Só se pode fazer política hoje, no enigma do mundo atual, com criatividade. Verbas não bastam. Vejam o exemplo da saúde. Que adianta dobrar verbas pelo CPMF para caírem no poço sem fundo das fraudes do SUS? (Por que será, aliás, que o exemplo genial do hospital Sara Kubitschek não foi seguido até hoje? Por que sabotam-no com descaro?)
As tentativas acadêmicas de acabar com a miséria levam diretamente à idéia de genocídio. Ou vocês acham que as favelas vão acabar na prancheta "clean" de urbanistas burgueses, sem a participação administrativa das comunidades? Só funcionará uma política de safenas sociais, atalhos de fuga contra os milhões de vagabundos e fisiológicos que vivem às custas do orçamento público. A burocracia é a base física da falta de esperança.
Prefeitos e governadores têm de fazer um curso de pós-graduação no Projeto Axé.

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