São Paulo, terça-feira, 4 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A caixa vermelha de Pandora

RODOLFO KONDER

Na antiga União Soviética, os dirigentes não tinham a estatura de um Átila ou o mistério de um Drácula, mas eram igualmente parceiros do medo e da morte. Só abandonaram o poder quando os primeiros raios de sol da "glasnost" atravessaram os vitrais do Kremlin, no alvorecer político provocado por Mikhail Gorbatchov.
Com poderes demiúrgicos, ele redesenhou o mundo, recriou o cenário internacional, livrando-nos da ameaça da guerra nuclear e nos poupando do maniqueísmo entorpecedor gerado pela Guerra Fria. Com invejável valentia, libertou as forças da diversidade e desfez as redes de pedra erguidas durante muitas décadas de uma ditadura feroz.
Gorbatchov renunciou em pleno Natal -e veio Boris Ieltsin, que ganhara legitimidade democrática nas ruas de Moscou, como líder de uma ampla resistência popular diante de uma tentativa de golpe de Estado contra Gorbatchov, então presidente constitucional.
Ieltsin foi eleito para governar o país e garantir o processo de modernização iniciado na gestão anterior. Então, seu governo abriu os armários, cheios de esqueletos.
Até hoje os velhos arquivos soviéticos são uma sinistra caixa de Pandora. Dali emergem cadáveres e conspirações, engodos e "gulags". A "ditadura do proletariado" significou, na verdade, o fuzilamento sistemático da ética, a oficialização da mentira, o domínio das sombras. Nas ruínas de um império, os arquivos secretos contam histórias ainda mais macabras do que os contos de Edgar Allan Poe.
Do fétido baú surgem todos os tipos de crimes e demônios. Documentos sobre o massacre de milhares de poloneses, durante a Segunda Guerra; informações sobre a derrubada de um avião sul-coreano; atos de canibalismo; clamorosos erros da Justiça; violência impiedosa contra inocentes. O alçapão nos leva a uma sociedade subterrânea e tosca, um inferno inconcebível que muita gente via como a materialização do paraíso no Terra.
Hoje se pode concluir que tudo aquilo não passava de um castelo de cartas. Os tanques, os foguetes e o monolitismo do partido único escondiam uma realidade estilhaçada, dividida entre etnias rivais, vizinhos separados por ódios seculares. Deuses e heróis, sonhos e mitos -um passado remoto agora renasce, num parto difícil e doloroso.
À nova ordem corresponde dialeticamente uma nova desordem. Surgem fatores de integração e fatores de desagregação. Universalismo de um lado, nacionalismo de outro.
Os inimigos também mudaram, como os tempos e os costumes. Já foram os tártaros, que chegavam do norte com os seus cavalos de crina longa e a sua impiedade. Foram os mouros, os nazistas. Durante a Guerra Fria, tiveram cores ideológicas.
Hoje, são o crime organizado, os vícios da antiga burocracia, os fantasmas de Pedro, o Grande, e Josef Stálin, que ainda espreitam, na penumbra. Muitas repúblicas se retiraram de cena. Outras, como a Tchetchênia, ameaçam fazê-lo. E no coração da Rússia devastada, Boris Ieltsin cambaleia, sem fôlego.
Mas a Rússia já ofereceu ao mundo músicos geniais, romancistas fantásticos, pintores e poetas, dramaturgos e bailarinos. Enriqueceu a cultura humana com uma indispensável contribuição específica, tornando-nos todos mais sensíveis e mais civilizados.
Não podemos reduzi-la a um monte de escombros resultantes do desmantelamento da União Soviética. Ela é uma das maiores nações em ação, com muitos milhões de habitantes, que ocupam um vasto e rico território. Ainda pode -e deve- desempenhar papel destacado na criação de uma nova ordem mundial mais justa e mais democrática, com Boris Ieltsin ou sem Boris Ieltsin.

Texto Anterior: A benção, baixo clero
Próximo Texto: Distribuindo a renda; Reeleição; Saber desperdiçado; Injustiça corrigida; Proteção aos bandidos; Modelo; Anonimato censurável; Desigualdade social; Viajante; Livros didáticos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.