São Paulo, terça-feira, 4 de fevereiro de 1997
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A benção, baixo clero

CANDIDO MENDES

Chegou a complicar-se inesperadamente o que parecia uma procissão tranquila de vitória, no Congresso, com a reeleição presidencial. Tropelias para além dos jogos da "combinazione", dos caprichos políticos e do que seriam as contas para chegar ao "bis" do situacionismo gloriosamente reinante.
O primeiro inédito é agora o dessa rebelião das convenções dos partidos, que tomam o freio nos dentes frente ao combinado com o Planalto, até para dar o recado das lideranças sem pô-las no fogo, como o fez o PMDB. Igualmente novo esse avanço da autonomia de um baixo clero no próprio Congresso, vindo à forra de sua obscuridade e fazendo-se valer na hora crítica.
Os deputados desconhecidos, sem voz, mas com voto, cansaram-se das decisões dos colégios de líderes ou das perenes maiorias simbólicas. Essa insatisfação amadurece, corta transversalmente todos os partidos e pode venenosamente surgir como um bloco e quase uma bandeira pirata, em torno de candidaturas como a de Wilson Campos.
Começando pela bancada ruralista, essa ruptura com a lealdade partidária fez-se em nome de mais alto valor ou interesse econômico que se erga lá fora. Dentro do Congresso, na sua medula, levanta-se a forra dos parlamentares contra uma elite auto-assumida entre os seus pares.
Esse mal-estar mais cresce quando é, exatamente, toda a máquina do Legislativo que vive uma história cinzenta, pela instalação do regime das medidas provisórias; da autocastração de seu poder de legislar e da disputa feroz dos holofotes remanescentes pelos ninhos de prestígio e bafejo do Planalto.
E avultam nesse quadro a fermentação e o desperdício da máquina gigante, parada no centro da praça dos Três Poderes. O azedume tem é que explodir, em tempos de mudança das mesas do Congresso, quando a nobreza parlamentar chega ao requinte, passando de filho a pai, da presidência da Câmara à do Senado.
As reformas constitucionais permitiriam alguns ofícios de pompa na catedral cada vez mais vazia do Congresso. Mas à super-reforma -a da reeleição- quiseram os cardeais dar o toque de compensação simbólica do baixo clero: buscaram entre os seus membros o de retrato falado mais condizente para a relatoria. Tudo nos trinques e no cinza, direito apenas do deputado Vic, do fradinho anônimo, de deixar as suas impressões digitais nas irrelevâncias do texto.
Os Wilson Campos darão conta dessa revolta larvar dos taifeiros do plenário, tanto vê o país toda a fratura de um mau funcionamento do Congresso, que se acostumou à subalternidade e à regra da luta de um espaço vital para a tribuna. Vai à frente essa bancada sem nome, mas de arregimentação irreversível, a partir deste meio de mandato que decantou vinho e água e definiu a nomenclatura do tucanato.
A descoberta recente do sentimento de "underdogs" -ou órfãos do pedigree parlamentar- não tira dos eleitores de Wilson Campos uma simpática intimidade caseira. Seu cotidiano irrelevante e profundamente companheiro se reconhece na dedicação do atual primeiro-secretário, nas mangas frescas, no mel, na jaboticaba lá de casa ou na babá funcional para as agruras da família em mudança.
Como na história da decadência dos primeiros reis franceses, os prefeitos do Paço sabiam o que fazer para levar o reino adiante, aliando-se ao baixo clero original. O poder de Campos é o mesmo da cozinha da boa administração, das serventias domésticas, sem galas nem cardeais, perigosamente aliciante.
A rebelião chegou em hora perversa para um tucanato obrigado a precisar do "sim" cinza e à surpresa dessa última conta negociada contra a parede na poeira dos ditos deputados irrelevantes. A burra é capitosa, aberta por um governo no auge de seu prestígio.
E a sideração pelo Planalto já vitimou o arranco da candidatura malufista. Que rival é esse que, de saída, conta com menos de metade do partido, vê o seu presidente a favor da reeleição e não tem força para remover o ministro que contradita o chefe?
Há tempo ainda para que o baixo clero venha às falas do continuísmo de FHC, não como "humilhado e ofendido", mas reforçado pelo desafio da candidatura Wilson Campos. Se derrotada, até onde o fel da perda vai reforçar a conta da forra na reeleição? Se vencedora, torna-se um terceiro poder nas combinações do Congresso, disposto a cortar, de novo, todo o baralho desses ajustes.
De qualquer forma, a opção intestina tornou exasperantemente visíveis todos os votos a negociar. O governo que ora conta o rebanho não reúne mais os carneiros da primeira hora. Tal como, perdendo o deputado do mel coado, das jaboticabas, é só um primeiro Wilson Campos que sobe ao tablado dos cardeais.

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