São Paulo, quarta-feira, 5 de fevereiro de 1997
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Quando heroísmo e torpeza se confundem

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Visto pela TV, todo o drama teve o caráter brusco, mecânico, incompreensível dos acontecimentos reais. O comerciante Osvaldo da Silva, negro, sem camisa, gritava da sacada de seu apartamento em Santo André. Tinha duas armas na mão. Quebrou os vidros da janela; dizem que estava drogado; parecia perigosíssimo.
Foi então que dois policiais, suspensos em cordas como se fossem Batman ou o Homem-Aranha, pularam na sacada. Imobilizaram Osvaldo. Foi tudo muito rápido. A câmera mostrou os policiais levando Osvaldo até o interior do apartamento. Um silêncio, um tiro, Osvaldo estava morto.
Investiga-se o caso. Os policiais dizem que o comerciante tinha reagido. Uma vizinha diz que ele já estava desarmado. Quem vê a cena na televisão só pode supor que ele estava efetivamente dominado. E que aquilo foi uma execução.
Os policiais responsáveis pela operação vão ser afastados do policiamento e passar por um curso de dois meses, com psicólogos e especialistas.
Poucos dias antes, a Folha mostrou fotografias de um policial arrastando brutalmente um garoto de rua, numa blitz no centro de São Paulo. A foto mais impressionante mostra o PM num gesto de esganar o menor; só que ele interrompe o gesto, surpreendido, segundo a legenda da foto, "pela presença da reportagem".
Lembro-me de outra cena espantosa transmitida nos noticiários de TV. Era um foragido da polícia que, na perseguição, atirava-se de uma ponte. Saiu nadando no rio. Os policiais começaram a atirar de cima da ponte; as balas espumavam na água barrenta do rio. Depois, se não me engano, foi encontrado o cadáver do bandido.
Aquela foi uma perseguição covarde; a violência contra o garoto, na blitz, foi covarde; o ataque ao comerciante drogado de Santo André foi no mínimo suspeito. Mas não posso chamar de covarde a operação toda. Eu nunca teria coragem de me pendurar numa corda e imobilizar um sujeito com duas armas na mão.
Claro, imagino que não mataria uma pessoa imobilizada, à minha mercê. Mas se foi isso o que ocorreu de fato, posso compreender o ato como uma vingança pelo risco a que o repressor foi submetido. Eu poderia ter sido morto, então mato, mesmo que a ameaça não exista mais.
Digo tudo isso sem a menor simpatia pela cultura da PM e concordo inteiramente com as críticas à violência policial. Tortura-se, achaca-se, mata-se alegremente no país.
Mas acho que as coisas começam a mudar. Há um empenho dos próprios setores de segurança pública em zelar mais pela imagem do policial; programas de assistência psicológica e doutrinamento civil têm sido implementados. Coisa para inglês ver? Precisamente. Quanto mais ingleses vendo melhor.
Minha maior dúvida, nesse contexto, se refere a uma recente proibição da Secretaria de Segurança Pública. Querem impedir que os policiais tenham participação ativa nos programas de crime que aparecem na TV, do gênero "Aqui Agora".
Claro, muitos abusos são cometidos. Detesto esses programas. Há um falso nervosismo no ar, oscilações ridículas de câmera, um clima de "muita emoção" que é muito fajuto. "Aqui Agora" e congêneres são o reino da histeria.
A locução pausada e didática de Gil Gomes é como que um disfarce, um anticorpo, para a real sede de sangue, para a ebulição real dos hormônios masculinos, para o esperado frenesi do tiroteio. A voz da repressão reprime-se a si mesma, porque a volúpia do policial em ação é também a volúpia do crime.
Quando um homem narra a cena, como Gil Gomes, tudo se emposta e pede calma, num furor a frio. Quando é uma mulher quem acompanha a blitz, a histeria punitiva se converte em medo histérico, ouvem-se vibrações de excitação na voz. "Não me machuquem!", mas, ao mesmo tempo, "Matem! fuzilem!" Acuada, a repórter virtualmente morre de fascínio frente à masculinidade pura.
Repito que detesto esses programas. Mas não sei se o mais correto é impedir que os policiais alcancem o breve estrelato que lhes é concedido, participando até como repórteres, o que não é sua função.
São muito mal pagos, como se sabe. Poderíamos triplicar seus vencimentos. Mas aparecer na TV, como agentes da lei, é um privilégio que para eles vale muito. Esses programas de crime dão dignidade e prestígio à função. O cabo ou o soldado humildes podem se orgulhar, diante da família e dos vizinhos, de terem participado numa blitz pela TV.
Trata-se de um salário indireto. Trata-se de alguma coisa que envolve valores sociais -coragem, prestígio- em vez de valores materiais. Tenho para mim que a coisa pior distribuída, hoje em dia, não é a renda, e sim a celebridade. Fazer com que um policial apareça na TV é tão justo quanto aumentar o seu salário.
Mas, quando temos ações policiais expostas à opinião pública, que não é, como sabemos, a opinião do povão, a tendência é melhorar o comportamento da polícia. E é, também, torná-la mais feliz, mais orgulhosa do que faz. Defendo, assim, que mais e mais PMs apareçam em ação nos programas do tipo "Aqui Agora". Sinceramente, acho que merecem. Seja pela coragem, coisa de que sou destituído, seja pela torpeza de suas atitudes, coisa cuja punição será facilitada se vista abertamente.
Não sei se coragem e covardia, heroísmo e torpeza são antônimos. Na prática, se confundem; todo grande guerreiro é criminoso, todo grande santo, ao reprimir sua revolta, é complacente. A virtude é algo de mais cavalheiro, quixotesco, desempenado e firme. Que cada policial fosse um Dom Quixote, um Percival, um Cid Campeador é nossa expectativa.
Mas são homens, que se acreditam às vezes Rambos, que têm prazer às vezes em serem Himmlers e Hitlers. Desse material turvo e assustador, os programas de crime na TV fazem heróis intrépidos. É melhor deixar que esses programas continuem. São falsos, mas em sua falsidade são capazes de convencer os próprios protagonistas de uma grandeza que não têm e que buscam sem saber.

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