São Paulo, quinta-feira, 6 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Crash", a subversão do sublime

CARLOS REICHENBACH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Corra para ver "Crash". Nem que seja para sair no meio. Há muitos anos o cinema não mergulhava tão fundo no risco absoluto. Mas não espere ser seduzido facilmente. O filme é um petardo, como toda obra à frente de seu tempo. Queiram ou não os detratores do autor canadense, dessa vez Cronenberg se superou.
O cinema como arte subversiva, tal como detecta Amos Vogel, parecia ter desaparecido com o fim do ciclo "reichniano" e servo-croata de Dusan Makavejev, com o libelo terminal de Pasolini ("Saló"), com a virada animista de Elzo Sugawa e Kiju Yoshida, com o trotskismo assumido de Ken Loach e com a aposentadoria do fescenino Russ Meuer (autor do fenomenal "De Volta ao Vale das Bonecas").
Quando uma bosta como "Fargo", dos sistemáticos diluidores irmãos Cohen, é escolhido como melhor filme do ano, o radicalismo de Cronenberg parece implodir a afasia criativa do cinema convencional. Os notórios larápios de idéias alheias logo estarão se apropriando das invenções do canadense doido; sem dar crédito, claro.
David Cronenberg é o único dos provocadores fílmicos vivos que ainda vêm mantendo acesa a chama da arte incômoda e libertária, experimental e universal, inconformista e visionária, insana e renovadora; em suma, cinema como experiência vital e exercício de transformação.
Tive a oportunidade de conversar pessoalmente com esse obstetra frustrado em 1980, durante o Festival de Roterdã, Holanda, e confesso que foi um pequeno detalhe que me ajudou a compreender melhor sua obra.
Após a "première" mundial de "Gêmeos, Mórbida Semelhança", saímos em um grupo de dez realizadores para jantar em um restaurante indiano, onde se comem mais de 40 pratos diferentes, onde todos "beliscam" dos mesmos pratos.
Pois bem, o senhor Cronenberg, ao ver que teria que colocar seu talher em pratos já remexidos, pediu desculpas e extraiu do cardápio um prato único e exclusivo. Alguém perguntou por que uma pessoa tão asséptica fazia filmes nem tanto. O próprio Cronenberg respondeu: "Eu sou canadense. Me perdoem por isso!"
O canadense que trava em seus filmes um embate permanente com a organização, a limpeza e a discrição de seu país, e que até agora buscava em todos os seus filmes uma leitura racional para as metamorfoses, a loucura, o dilaceramento, o inferno mental e o êxtase físico na dor e na morte, transgride seus próprios limites em "Crash".
Se há uma leitura extremamente rica nesse filme transgressor, é que ela trata de mortos-vivos. Na essência, almas penadas, que não se conformam com os acidentes em que foram vitimados e que ficam buscando obsessivamente a morte após a morte.
"Crash" traz para a tela de cinema a mais espantosa visão do purgatório. Os repetitivos e extenuantes atos sexuais mostrados apontam unicamente para o esgotamento de toda a energia vital. Fazer sexo parece tornar possível abreviar a falsa vida de quem já está morto. Os personagens anseiam pela morte do espírito. E é aí que reside o horror. Um horror desglamourizado que causa náuseas aos fetichistas e aos adeptos da firula estetizante.
Desde seus filmes na faculdade, Cronenberg já previa a peste dizimando milhões via genitália. Na época, início dos anos 60, diziam que era um débil mental. Agora ele fala do culto da dor e da morte. Acusam-no de paranóia "profissional".
Aos que celebram o fetiche, Cronenberg responde com a tragédia. "Crash" não cativa a jequisse sadomasoquista do "pierce & argolas", porque transcende todos os limites da tríade dor/amor/prazer, deflagrando poesia no abismo. Uma poesia desolada que incomoda porque reduz o espectador a cúmplice da agonia.
Ao contrário de Roman Polanski, cujos melhores filmes (leia-se "O Bebê de Rosemary" e "O Inquilino") faziam um mal danado à mente e ao físico (ou, na opinião de um ensaísta conceituado, "traziam azar"), a demência "deprê" de Cronenberg é catártica. Os mortos que caminham, ou melhor, que trafegam em "Crash" são danados pela paixão. O antológico final é uma das mais belas e terríveis cenas de amor já mostradas no cinema.
No purgatório de Cronenberg não há lugar para o mal (ao contrário de Polanski). Há o desejo em seu estado primário, movido por um altruísmo desmesurado: a imagem decorrente das mulheres oferecendo o seio para o amante, a obsessiva preocupação com o orgasmo do outro, a atordoante ausência do sentimento de posse, as cicatrizes transformadas em objeto de paixão etc.
Só um olhar preguiçoso consegue perceber nesse filme uma leitura fácil do livro em que foi inspirado. Cronenberg transcende a frágil metáfora de automóveis como apêndice sexual. Aliás são os automóveis o que menos importa em "Crash", embora o diretor tenha fixação neles. Pode-se enxergar aqui uma versão trágica e passional do já clássico "Two Lane Blacktop", de Monte Hellman (este sim um filme sobre paixão por carros). Máquinas e corpos são elementos secundários quando os personagens centrais são mutilados de alma.
Cronenberg traduz para o cinema o que Murilo Mendes exigia da vida dos verdadeiros poetas: campo de improvisação, fenômenos, prazeres e sensações antipráticos, inesperadas metamorfoses, audácia espiritual e a síntese da loucura.
Como verdadeira obra de arte, "Crash", o filme, é, antes de mais nada, um poema subversivo e desesperado; uma depressiva mas sublime história de amor.

Carlos Reichenach é cineasta, diretor de "Alma Corsária" e "Anjos do Arrabalde".

Texto Anterior: 'Trip' publica fotos inéditas de Hendrix
Próximo Texto: Censura tolera "pornografia" de Amado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.