São Paulo, quinta-feira, 6 de fevereiro de 1997
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O corpo, entre a vida e a morte

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

A lei recentemente sancionada que cria a figura do doador presumido de órgãos em caso de falecimento sem que a pessoa haja registrado publicamente uma proibição da utilização de seus órgãos "post mortem", que deveria estar inscrita em documento de porte obrigatório (como RG), levanta sérios problemas que tocam fundo no ser humano, trazendo, por isso, até mesmo alguns riscos de inconstitucionalidade.
É importante a premissa segundo a qual o corpo humano não deve ser considerado como um mero objeto. Ainda que possa sê-lo para os outros -para um cientista, por exemplo-, não o é para a própria pessoa, que nunca o vê como algo exterior a si próprio, mas como o limite de sua própria transcendência (cf. Gabriel Marcel).
"O meu corpo" não é algo fora de mim, mas sou eu mesmo, compõe o sujeito que eu sou. Não é, pois, algo como uma casca que, morto o homem, se lança ao lixo, donde o respeito em muitas religiões ao cadáver. Quando se enterra alguém, é uma pessoa que é enterrada, não "o seu corpo". Mesmo depois da morte, os epitáfios costumam registrar "aqui jaz fulano de tal" e não "aqui jaz o corpo de fulano".
Segue, destas considerações, que o corpo deve ser considerado como integrante da personalidade. Assim como alguns direitos fundamentais são garantidos mesmo após a morte (direito à imagem por exemplo, ou à honra), nada impede que a garantia possa ser encarada também em face do corpo que a pessoa é, durante a vida, e continua sendo, após a morte.
Isso afeta o direito de dois modos, pelo menos. Ao tornar qualquer pessoa um doador presumido, a lei estará obrigando o cidadão a fazer uma declaração pública de que seu corpo não poderá ser usado. Entendo que, pelos motivos expostos, a presunção conforme a Constituição deveria ser inversa, isto é, o corpo poderia ser usado desde que houvesse uma doação expressa.
Por exemplo, entende-se que, salvo autorização expressa, declaração ou escritos íntimos que afetam a imagem do morto não podem ser publicados. A família tem direito de impedi-lo. Do mesmo modo, isso deve valer para o corpo, que integra a pessoa tanto quanto sua dignidade moral.
Disto segue uma consequência incontornável: cabe submeter alguém, quando vivo, ao constrangimento de declarar, publicamente, que não se faça uso de seus órgãos?
Um tal constrangimento, entre outras coisas, afeta ou pode afetar convicções religiosas. Por exemplo, os judeus ortodoxos não admitem o uso do corpo nem para fins científicos. Os cristãos, que são chamados (vocação) ao espírito da caridade, podem, no caso de obrigação de declarar que não desejam doar, sentir um constrangimento no livre exercício (consciência moral) de sua religião.
Posso imaginar, além disso, que, na ausência da declaração expressa, a família, fundada em sentimentos fortes, venha a se opor à doação. E isso fundada, por exemplo, em convicções religiosas. Pode, nesse caso, a lei submeter a família a esse constrangimento? Ou pode a família, com base no livre exercício de uma convicção desse gênero, impedir a utilização?
Poder-se-ia invocar, nesse caso, a supremacia do interesse social sobre o individual. Mesmo este argumento encontra, no entanto, importantes limites na proteção à pessoa que cada um é com o seu próprio corpo e na consequente proteção à dignidade da família.
Claro que o homem pode arriscar sua própria vida, por exemplo, para salvar outra. Mas ninguém pensaria em condenar alguém por não fazê-lo, fundado na suposição de que, não havendo declaração pública, devesse fazê-lo. O exemplo não é absurdo, quando pensamos que a vida e a morte, como condição humana, se implicam e se exigem mutuamente.
Afinal, o que seria mais doloroso: a mãe que sofre por ver o filho morrer à falta de um doador voluntário ou a mãe que, diante do filho acidentado e cuja morte cerebral foi diagnosticada, se vê obrigada a suportar, no transe do momento, a retirada de seus órgãos porque, por alguma razão, não consta proibição expressa do morto?
Ademais, sendo o Brasil um país de grandes contrastes sociais, é possível que, por ignorância, muita gente não faça uma tal declaração e se torne doador sem querer. É provável que, simplesmente, sejam atingidos os desfavorecidos, que, culturalmente, não contam com meios para tornar consciente e clara sua disposição de negar.
O que se faz necessário é tornar ainda mais eficiente a divulgação da possibilidade de doação e bem organizada a recepção dos órgãos. Doutro modo, até mesmo os riscos de uma "comercialização" indevida e indesejável de órgãos será, mesmo se punida com severidade, ainda maior do que, hoje, de fato é.

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