São Paulo, sexta-feira, 7 de fevereiro de 1997
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Vida e pós-vida no diário de Thomas Mann

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Sou leitor de diários. Da colegial que anota suspiros ao militar que registra suas emoções ao montar e desmontar um fuzil-metralhadora, acho que todos têm alguma coisa a contar -e como o gênero não requer técnica nem cultura, indispensáveis ao romance e ao ensaio, qualquer diário, para mim, além do sabor com que se penetra na intimidade de alguém, tem a validade do testemunho não solicitado, do ressentimento disfarçado, da confissão nem sempre voluntária.
Thomas Mann pode ser considerado o maior autor alemão e um dos mais importantes escritores deste século. Quarenta anos depois de sua morte, foram editados seus diários abrangendo os anos de 1953 a 1955 (Thomas Mann, "Tagebucher", Frankfurt, 1955).
Diferentemente daqueles que escrevem diário por falta do que fazer ou como instrumento de compensação, o autor de "Dr. Fausto" ocupava o pódio de maior intelectual de seu tempo.
O sucesso como romancista aliava-se à sua personalidade humanística. Até certo ponto ele representava, para a consciência alemã, o "outro lado" de uma persona que tivera em Hitler a sua face mais ostensiva e monstruosa.
Não era uma unanimidade nem então nem agora, mas funcionava consensualmente como referência obrigatória da cultura que deu ao mundo Lutero e Goethe.
Seus diários, portanto, são indispensáveis para penetrar não apenas numa biografia formal e formalizada por temperamento e gosto, mas no labirinto de uma consciência. As anotações começam balizadas por dois momentos: a consagração universal por sua obra, nela se incluindo o polêmico distanciamento do nazismo, e a chegada assumida da velhice e da morte.
Ele próprio admite como "estranho e festivo esse ruidoso final de vida". Seus visitantes, alunos ou escritores que dele se aproximavam reverentemente, guardam a impressão de "estar em presença de uma estátua dele mesmo, desdenhosa e enigmática como sempre são as estátuas dos grandes" (Joachim Fest).
Era admirado, excessivamente louvado, talvez amado, mas todos tinham a impressão de que ele "jogava com cartas que não deixava ninguém enxergar".
Parte dessas "cartas" são reveladas nos diários. Ao lado dos registros cotidianos que alguns consideram enfadonhos, o dia-a-dia da chuva ou do sol, do frio ou do calor, das idas ao alfaiate ou ao barbeiro, os problemas mesquinhos com a casa e a saúde, as pomadas, as injeções, as pílulas de um final de vida, há os relâmpagos que iluminam a placidez da "estátua dele mesmo".
Ele acabara de ganhar títulos de glória das principais universidades da América e da Europa, recusara o Prêmio Stalin, mas aceitara o Nobel em 1929, o papa Pio 12 o recebera como a um chefe de Estado, havia filas nos cinemas de todo o mundo para ver "Alteza Real".
Seu livro mais popular, "A Montanha Mágica", era a metáfora de uma Europa enferma, Luchino Visconti prometia filmar "Morte em Veneza" e ele fora designado para falar em nome da Alemanha nas grandes comemorações dedicadas a Goethe e Schiller. Apesar da idade e do desencanto por tudo, escrevia "Felix Krull".
Qualquer ser humano sentir-se-ia recompensado pela faina de 80 anos assim aproveitados. Thomas Mann, contudo, queria mais ou não queria mais nada. "É terrível pensar que estou sobrevivendo a mim mesmo". E tudo que o desilude ou o faz sofrer recebe o comentário recorrente: "É assim quando a gente sobrevive a si mesmo".
O desespero pelo fim da vida é lúcido, tranquilo. Ele escreve a sua filha Erika sobre "a inutilidade de todo consolo". E com a amargura de sua autocrítica, resenha suas derradeiras obras: "Minha última obra coerente é 'Faustus'. Mas continuei a viver. 'O Eleito' e 'A Enganada' já são meros apêndices, são desnecessários. O que estou levando agora é uma pós-vida. Viver ainda é um erro".
Como sempre acontece aos alemães, de Lutero a Hitler, nos momentos mais densos a música é a linguagem que sobra. Thomas Mann passava horas junto à vitrola, ouvindo Wagner, Beethoven e Mahler, mas fazendo concessões aos românticos tardios como Schubert e Schumann.
Durante toda a vida fora considerado um homem bonito, de olhar frio, às vezes implacável. Esse olhar que parecia condenar a humanidade, isolando-o em sua montanha (Zaratustra também tinha a sua montanha), é lançado sobre si mesmo.
Em 1953, depois de longos, tenebrosos invernos de afastamento e ressentimentos, visita Lyubeck, sua cidade natal, revê a casa dos Buddenbrook -chave de sua novelística. Se Marcel Proust em vez de um biscoito tivesse uma casa, Mann descobriria que não desperdiçara o tempo, mas igualmente o perdera.
Com sangue brasileiro nas veias, fumando apenas charutos baianos, Thomas Mann revela-se um homem-fronteira, colocado pelo destino entre dois tempos, entre duas concepções de mundo. Num de seus últimos apontamentos, poucas semanas antes de morrer, reconhece que "a preocupação com o futuro de minha obra é vexatória e miserável". Queria ser uma consciência. Foi um homem.

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