São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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Um antídoto à mediocridade

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A obra do pensador americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882) é um grande remédio para quem se sente vítima do desânimo, do remorso, da timidez ou da mediocridade. Quem leu os seus "Ensaios", cuja primeira série foi publicada pela Imago em 1994, conhece o tom de exaltação serena, o fulgor sóbrio dessa prosa que é uma espécie de hino em favor do indivíduo, da sua auto-realização, da sua independência espiritual.
Há frases que merecem ficar para sempre na memória. "Acreditar em vosso próprio pensamento, acreditar que aquilo que é verdadeiro para vós, no fundo de vosso coração, é verdadeiro para todos os homens -isto é o gênio... Em toda obra de gênio, reconhecemos nossos próprios pensamentos rejeitados: eles retornam a nós com certa majestade alienada... Nada, enfim, é sagrado, a não ser a integridade de nossa própria mente." São trechos de seu ensaio "Autoconfiança".
Emerson consegue o feito admirável de ser otimista sem parecer tolo, e de dar ao individualismo norte-americano uma versão em tudo oposta à mesquinhez e à vulgaridade que costumam se associar a esse termo.
É verdade que ele pode ser lido como nada mais do que uma espécie elevadíssima, ancestral e nobre de toda a literatura de auto-ajuda contemporânea; sua descendência intelectual é assim suspeita. Mas o que, nos livros atuais, há de conselho bobo, de verborragia banal, de exortações feitas de matéria plástica, parece retornar em Emerson, para usar suas próprias palavras, "com uma majestade alienada", com amplitude de vistas, numa intimidade com os grandes espaços e com as forças naturais. Estou comparando meia dúzia de lâmpadas a uma estrela.
Mesmo assim, o efeito dos ensaios de Emerson tende a se dissipar depois de algum tempo. É então com esperança que nos voltamos para mais um livro seu, "Homens Representativos", que a Imago apresenta em nova tradução.
São oito conferências, publicadas pela primeira vez em 1850. Depois de um texto introdutório, Emerson fala sobre "Platão, ou o Filósofo", "Swedenborg, ou o Místico", "Montaigne, ou o Cético", "Shakespeare, ou o Poeta", "Napoleão, ou o Homem do Mundo", e "Goethe, ou o Escritor".
Com exceção do visionário sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), autor de obras como "Os Arcanos Celestes", que conversava com anjos e fantasmas, e fez uma descrição detalhada do Outro Mundo, as demais personalidades comentadas por Emerson são conhecidíssimas. O risco é, falando delas, cair no lugar-comum.
Mas Emerson não se propõe a fazer biografia ou análise crítica. Cada grande homem vem ao mundo, segundo Emerson, para multiplicá-lo, e para multiplicar a nós mesmos. E é como se a própria natureza procurasse, para revelar-se plenamente a nós, o intermediário de um grande homem. A idéia de uma harmonia entre o mundo das coisas e o mundo do espírito, de uma predestinação da matéria para elevar-se até o entendimento humano, de uma espécie de conspiração geral em favor de nossas próprias potencialidades, é o fio condutor das análises de Emerson.
Assim, Goethe realiza a vocação do escritor, que no fundo é a de todas as coisas, já que "todas as coisas se empenham em escrever suas histórias. A pedra que rola deixa sua marca na montanha; o rio, seu sulco no solo..." e todo objeto está "coberto com alusões que falam aos seres inteligentes".
Entender essas alusões, ver como cada objeto é na verdade o hieroglifo de todos os demais, foi também o propósito a que se dedicava Swedenborg, numa investigação mística e não mais puramente literária. Mas Shakespeare, o poeta, também sabia "que uma árvore tinha um outro uso, além de dar maçãs, e o milho, um outro, além de ser refeição... que essas coisas são portadoras, para a mente, de uma segunda e mais refinada colheita, sendo os emblemas de seu pensamento e conduzindo, em toda a sua história natural, um certo comentário mudo sobre a vida humana".
E Napoleão ensina aos homens, mais uma vez, como é falsa a crença "de que o mundo está gasto". "O mundo tratou as suas novidades exatamente como trata as novidades de todo mundo -criou infinitas objeções... mas ele estalou os dedos para as suas objeções."
Reencontramos aqui, a cada personalidade analisada, o mesmo Emerson, pronto a postular que cada novo dia é uma nova criação do mundo, que cada pessoa é um grande homem se souber ouvir seu próprio instinto, e que cada ínfima parcela da realidade está à espera de um despertar.
Mas o poder de persuasão do autor me parece, em "Homens Representativos", menor do que nos seus "Ensaios". Os perfis, os traços característicos de cada grande personalidade se turvam um pouco diante das generosas abstrações emersonianas. Apóstolo da afirmação da individualidade sem entraves, Emerson parece estar sempre a um passo de apagar a de todos em benefício de sua própria convicção. A "novidade" postulada resulta um tanto repetitiva, e a busca das harmonias do todo em toda parte traz consigo o risco da monotonia.
Não quero afastar o leitor de um livro tão majestoso, tão pronto a elevá-lo. É preciso, entretanto, advertir quanto à tradução, que o compromete gravemente. Há passagens totalmente incompreensíveis, como o primeiro parágrafo do ensaio sobre Platão: "Entre os livros, Platão só é mencionado para o fanático cumprimento de Omar ao Corão, quando disse: 'Queimem as bibliotecas, pois seu valor está neste livro'." O que Emerson escreveu é o seguinte: "Dentre os livros não-religiosos, apenas Platão merece o cumprimento fanático que Omar fez ao Corão, quando disse, 'queimem as bibliotecas, pois todo o valor delas está contido neste livro'±".
Erros de vocabulário, frases truncadas aparecem a todo momento. Platão foi acusado de fingir estar doente na época da morte de Sócrates; a tradutora diz que ele "foi acusado de doença do fingimento". Uma "larva com asas" vira um "trator com asas". E assim por diante. A tradução de Alfredo Gomes, publicada pela Ediouro, ainda é um pouco melhor, apesar de às vezes parecer ter sido feita do francês, e de estar pontilhada com notas esquisitas, impertinentes ou simplesmente tolas.

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