São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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O espetáculo de um mundo infame

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esta novela é um gesto e uma experiência enigmática em mais de um sentido para a nossa cultura literária. Primeiro, ela é escrita a quatro mãos, embaralhando assim o princípio tradicional e constitutivo da autoria individual. Se é verdade que especialmente a novela é irmã siamesa do autor, o que dizer de uma que é irmã siamesa de dois autores.
Depois pelo fato de ambos terem vindo de universos intelectuais perfeitamente outros com relação à literatura de ficção. Jean-Claude Bernardet, de um exercício primoroso, iluminador e empenhado da crítica e do ensaísmo cinematográfico, particularmente sobre o cinema brasileiro e o cinema novo. São seus dois livros hoje clássicos sobre o tema: "Brasil em Tempo de Cinema", e "Cineastas e Imagens do Povo". Teixeira Coelho também parece ter se decidido saltar fora da escrita e da atividade ensaística que o fez conhecido.
Assim, pelo menos desde "Os Histéricos" (Companhia das Letras), de 1993, a primeira parceria entre os dois, uma novela epistolar moderníssima, na qual as ligações inessenciais -mas não menos perigosas entre os personagens- são mediadas não tanto pela intriga à Choderlos de Laclos, mas pela fofoca mesmo, é como se a ficção fosse para eles uma espécie de lugar secreto e meio experimental, de escapulida pelos poros da experiência cultural contemporânea e de configuração desassombrada desta experiência.
Por fim, este "Céus Derretidos", sobre a criação e a montagem de uma ópera pop que tem como figura central um "justiceiro" da periferia de São Paulo, é uma novela particularmente enigmática num outro sentido, mais crucial. Se é também verdade que o romance, tal como o conhecemos desde o século passado, nasceu quando o sentido dos caminhos a serem tomados pelos personagens escorreu do céu que o guardava para o mundo, a realidade, as relações econômicas, para o chão da vida social, espécie de epopéia meio degradada e de cabeça para baixo, nesta novela não há mais mapa de referência em lugar algum. É como se os personagens, o compositor pop, esperneante, orgiástico, a soprano -criatura quimicamente pura de Puccini, e cujo nome, Anna Tellalba, é um achado, é toda uma aura operística-, o delegado, com sua consciência rangente e infeliz, o padre erudito, espécie de filólogo italiano convertido em minoria abrâmica na periferia de São Paulo, girassem em falso.
Atordoa: principalmente porque não se trata de mais um desses livros enjoativamente demissionários, estética da apatia. Ao contrário: há um frêmito, um rasgo, frisante, embora bufo, na gesticulação dos personagens, como a ondulação fantasma de uma grandeza imemorial, e que passa a ter como única chance de presentificação a imaginação cenográfica do compositor, sua cabeça Led Zepellin, a teimosia sagrada de Anna Tellalba, a melancolia do delegado, a tentação da arte tomando de novo de assalto o espírito do Padre Amado. É todo um mundo girando fora dos gonzos e oscilando em meio ao gelo seco num palco italiano no Teatro Municipal.
O único personagem que faz parte do mundo realmente existente, o único personagem aparentemente não-problemático, enraizado aqui e agora, é o matador. É ele o único que, depois de deixar o teatro sem ser notado (Zelig da transparência do mal, ele é todos e é ninguém), chega a dizer: "Tanta gente me esperando, por aí...". Mas a culpa disso, o horror diante desse messianismo invertido, não vêm dessa novela inesperadamente moral nem das suas criaturas quase irreais, que com sua respiração, suas dobras, as frisas de uma grandeza abolida, são como que projeções holográficas no fundo do palco. No caso a culpa não é da beleza e da força um pouco de libreto italiano da novela. É ao contrário da infâmia do mundo realmente existente em que ela se aloja.

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