São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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A miséria de um dia de inverno

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

É um domingo invernal, que em Paris ficará nos anais dos excessos sazonais do frio. Vou com alguns amigos ao mercado do bairro burguês em que moro. Com suas lojas especializadas e seus cafés, é um mercado simpático e tranquilo: aos domingos, quando tem um pouco de sol, é onde as pessoas se encontram para conversar amigavelmente...
Hoje é um mundo completamente diferente. Vagabundos, clochards, SDF ("sans domicile fixe", sem domicílio fixo), miseráveis das mais diferentes proveniências marcaram encontro no meu mercado. Quase não dá para entrar: na entrada, é preciso ultrapassar uma barreira de pedintes; depois, prosseguindo, pobres por todos os lados: alguns -monstruosos- deitados pelo caminho, outros -grotescos- dançam e cantam, outros -infames- entram nos cafés ou se insinuam, esmolando pelas filas das lojas em que nós, burgueses, selecionamos os queijos, aguardamos que limpem o peixe adquirido ou escolhemos aquele vinho branco que combina, justamente, com aquele peixe...
A mendicância é insistente, ininterrupta, a representação da miséria por parte dos pobres (uma "Ópera dos Três Vinténs" pós-moderna) é obsessiva -e, no entanto, não é violenta... Pergunto-me nervosamente: por que motivo não nos agridem? Cruzo com os olhares perdidos ou apavorados de algumas velhinhas que estão perto de mim, na fila: evidentemente elas também estão se perguntando a mesma coisa.
Ironicamente, lembro-me do Marquês de Sade que, chegando em Nápoles em 1776, espantava-se -em seu diário de viagem- que "o imenso populacho permanecesse na ordem sem a polícia...". De qualquer maneira, o mal-estar -meu e dos amigos que me acompanham- aumenta e rapidamente voltamos para casa. Dizemos que é por causa do gelo: mas não é verdade. Será, então, que voltamos para casa por estarmos vencidos pela indignação que um espetáculo de tamanha miséria produz? Nem mesmo isso é verdade. Seríamos então, nós também, bons intelectuais pós-socialistas que, vacinados pelos ensinamentos de Hanna Arendt & cia., excluem a lógica da piedade do complexo de suas paixões? E acreditam que, se a comiseração pode se transformar em ressentimento ou em violência, é para ser, acima de tudo, evitada? Nem sequer isso é verdade.
Então, do que surgia aquele insuportável mal-estar? Muito provavelmente de um extremo sentimento de impotência. O que, de fato, alguns intelectuais desarmados podem fazer, ao se verem diante de uma degradação tão feroz da cidade e da extinção das normas de assistência pública que eram próprias da modernidade? E como poderão lutar, ou mesmo só testemunhar, alguns intelectuais isolados, quando, na gigantesca guerra que nos conduz do moderno ao pós-moderno, foram derrotados e destruídos aqueles fortes sujeitos coletivos que haviam imposto, com lutas seculares, aquela ética civil que agora se quebra?
Trata-se, com efeito, disto: aqueles sujeitos eram os operários industriais; agora, estes miseráveis que nos cercam, esmolando, são desempregados industriais. Enxotados das fábricas, expropriados de seus modos de vida, transformados em vagabundos, vivem numa cidade que os despreza. A não ser que aceitem novas condições -as mais miseráveis possíveis- de trabalho. Serem pagos menos para trabalhar mais, a toda a hora e em qualquer lugar: e já é uma sorte.
Claro, estes desgraçados que nos cercam são livres (não foi o "mundo livre" a triunfar em sua metafísica batalha contra o demônio coletivista?), livres como nunca. Marx chamava o proletário da Primeira Revolução Industrial de "Vogelfrei": livre como um pássaro. E, na realidade, os desgraçados que nos cercam efetivamente podem escolher entre o trabalho "escravo" e a droga, entre a servidão doméstica nas casas dos burgueses ou a prostituição...
Mas, afinal, não vamos nos queixar excessivamente, pois um certo progresso existe, se confrontarmos estes novos proletários, nesta nova acumulação primitiva pós-moderna, àqueles primeiros proletários, livres como pássaros, que (conta-nos ainda o velho Marx), arrancados dos campos, eram forçados ao trabalho assalariado pelo chicote ou pela tortura. Se virassem mendigos importunos aos clientes de um mercado burguês, eram passíveis de "marca de fogo" e, em caso de reincidência, de "corte da orelha".
As coisas realmente estão melhores para os miseráveis que hoje nos cercam... E ainda há quem diga que o progresso não existe! Mas voltemos a nós: o que podem fazer os intelectuais a partir desta impotência que paralisa pensamento e ação coletiva? Bancar São Francisco de Assis? Participar, em alegre rebeldia, da miséria? Infelizmente, conhecemos alguns que tentaram: metade deles morreram com as drogas, os da outra metade tornaram-se titulares de ONGs (organizações não-governamentais) caridosas.
Francisco de Assis não parece atual. É um herói de outra época -é provavelmente, como argumentavam Deleuze e Guattari, o primeiro herói de uma época de acúmulo insensato (a Renascença italiana) que devia acompanhar o cinismo da extração da mais-valia com a figura do capitalista arrependido, isto é, aquele que sabe perdoar, por meio de uma caridosa redistribuição do supérfluo, os que explorou brutalmente... Mas, se Francisco não serve, como poderá o intelectual sanar sua impotência no confronto com a nova acumulação?
Não conseguíamos responder, meus amigos e eu: então, uma espécie de delírio tomou conta de nós -Leopardi, Nietzsche, Céline, Beckett, o De Sica de "Milagre em Milão"...-, desespero, absurdo do mundo, angústia, solidão, decepção... Ou então ilusão, sonho, testemunho, paixão, amor... Mas não há -eis a última pergunta, que ainda cheios de frio, naquele domingo de inverno, nos fazíamos-, não há uma nova forma de ódio que permita ao livre e desesperado vôo do novo proletário reconhecer o galho onde pousar?

Tradução de Roberta Barni.

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