São Paulo, quinta-feira, 13 de fevereiro de 1997
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Lamia diz estar no túnel do tempo

MARIA CRISTINA FRIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES

A brasileira Lamia Maruf Hassan (pronuncia-se Lâmia), 32, chega na manhã de hoje ao Brasil, no vôo 759 da Varig, depois de ter sido expulsa de Israel anteontem. Ela passou o primeiro dia em liberdade no centro de Londres, onde fez escala rumo a São Paulo.
"Lembra do seriado túnel do tempo? Os personagens eram jogados nos lugares e não sabiam onde tinham ido parar. É assim que me sinto."
Lamia prevê dificuldades na adaptação à vida fora da prisão.
"Você tenta se acostumar às coisas, mas por dentro fica perdida." Pelo estranhamento de Lamia em seu passeio pelas ruas, a tarefa não vai ser fácil.
Depois de ter dormido apenas uma hora na madrugada de ontem, Lamia saiu ao meio-dia do Heathrow Hilton Hotel com seu advogado, Airton Soares, e o cônsul-geral em Londres, para uma visita ao consulado brasileiro na capital britânica.
No caminho a pé para o almoço, fala com um irmão em Israel por um telefone celular emprestado. Não gosta da experiência.
"Que coisa horrorosa falar pela rua! Senti-me tomando banho na calçada, constrangida de conversar aqui!", diz com admiração.
No restaurante não hesita, como faria nas lojas, mais tarde.
"Quero salada de palmito e um filé grande, como nos desenhos do Tom e Jerry. Melhor: no dos Flintstones. Há séculos não como um e ficava só imaginando quando via um anúncio de um restaurante desses, na televisão da prisão (Hasharon, ao nordeste de Tel Aviv), que era uma tortura."
Quando a carne chegou, ela pediu que a recolocassem no fogo. "Detesto ver sangue."
O restaurante El Gaucho não foi uma boa escolha para levar quem acaba de ganhar a liberdade. Funciona num subsolo. "Estou louca para sair daqui. É muito fechado e abafado", comentou mais de uma vez.
Durante o almoço, Lamia demonstrou uma certa dificuldade em entender brincadeiras, ironias. Leva tudo a sério, apesar de manter o bom humor e, quase sempre, a disposição para conversar.
Está a par da história recente do Brasil. Comparou o ex-presidente Fernando Collor ao primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, de Israel. Conhece até programas que passam na televisão brasileira. "Devorava os jornais."
Falou sobre o marido, Tawfic Ibrahim Mohammed, condenado à prisão perpétua em Tel Aviv, sobre as amigas do presídio e sobre a comida que tinham lá.
"Péssima. O frango vinha até com penas." Junto com as outras presas, ela reaproveitava o que era fornecido, cozinhando em pequenos fogões que conseguiram depois de muitos movimentos e greves de fome que fizeram.
"Fomos conscientizando as outras presas aos poucos. Levamos dois anos programando uma greve de fome", lembra.
Liderança
Além desse papel, Lamia ainda exercia uma liderança de ordem prática. Era ela quem tomava conta do dinheiro que as presas tinham. De início, elas entregavam o que recebiam de parentes. "Há quatro anos, Arafat (Iasser Arafat) paga as contas", disse ela, mencionando mais uma vez o líder da Autoridade Palestina.
Com a verba arrecadada, ela fazia certas compras no presídio, "que quase sempre cobrava mais caro do que comerciantes de fora".
No final da refeição, Lamia lamentou não ter podido tomar suco natural de laranja. "No presídio, chegava a guardar as frutas que vinham por vários dias, até conseguir a quantidade suficiente para fazermos suco."
Lamia parece ter se acostumado a viver com pouco. Estranhou o exagero das lojas e, apesar de ter circulado por um dos maiores centros comerciais de Londres, não sentiu vontade de comprar nada. Apenas maquiagem.
"Não quero desembarcar com a aparência de cansada", afirmou.
A mesma preocupação ela deve ter tido na chegada ao Reino Unido, na noite de anteontem, proveniente de Israel. Veio com os cabelos bem penteados, com toques de hena, uma tintura natural obtida apenas nos últimos dias de prisão, e os olhos levemente delineados.
Confusa em meio a tantos produtos, Lamia não conseguia escolher, apesar de ter aprendido -e bem- inglês na prisão.
Pede ajuda da reportagem para escolher um pó compacto, um "blush" e um lápis preto para os olhos. Lembra que quer comprar um presente para a filha no aeroporto, mas com tantos anos de distância, não sabe o quê.
"Do que ela gostaria? Fico preocupada com o nosso reencontro. Ela teve problemas por causa disso tudo."
A seguir, trechos da entrevista que ela deu ontem à Folha na capital do Reino Unido:
*
FUGA - Não tinha por que fugir. Não achei que seria presa. Só tinha trazido o carro. E antes, às vezes, entregava mensagens a pedido do meu marido.

REAÇÃO À MORTE DO SOLDADO - Lá isso é tão normal. É visto como ato de heroísmo. Vocês não entendem... Vi a facilidade com que israelenses matam palestinos. Já vi soldado israelense matar um velho palestino só porque não tinha identidade. E, em caso de prisão, se dizia que sempre tinha troca de prisioneiros.

LUTA ARMADA - Não teria sentido agora com Arafat negociando. Ela foi inevitável e agora é inviável. Se bem que os palestinos tem de ter nervos de aço porque ainda existe humilhação e ocupação.

MARIDO - Não posso falar com ele por telefone. Não queria ser deportada para poder visitá-lo com a minha filha. É importante para ela ver os pais juntos.

MILITÂNCIA PELA CAUSA PALESTINA - Quero militar pela paz. Apoio o acordo de paz, apesar de algumas reservas, mas o processo é muito positivo. Acho que posso fazer esclarecimento no Brasil, na América Latina. Inclusive com judeus, seria um prazer. Tenho bons contatos com israelenses progressistas. Existem focos de pressão sobre o governo israelense na Europa e na América Latina. Mas não são organizados. Eu pretendo trabalhar nisso.

APOIO DE GRUPOS ISRAELENSES - Recebi de uma organização formada por mulheres israelenses. Fiquei com medo de elas serem agredidas por pessoas de direita.

ARREPENDIMENTO - Qualquer pessoa se envolveria. Não se pode impedir. É como a Resistência durante a ocupação alemã na França, durante a Segunda Guerra (1939-1945). Pode ter sido de uma forma violenta, mas é compreensível que não se fique de braços cruzados. Muitos diziam "podiam optar pelo diálogo", mas os palestinos sabiam que era difícil.
Agora a Autoridade Palestina nos territórios admite que ela está lá graças à atividade de todos que estão na prisão. Ficou na prisão a nata. São as pessoas que pegaram em armas por ordem de Iasser Arafat. É inevitável que os outros sejam libertados, mas precisa de uma movimentação internacional.

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