São Paulo, quinta-feira, 13 de fevereiro de 1997
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Paulicéia devastada

OTAVIO FRIAS FILHO

São Paulo é a cidade-síntese do estilo de desenvolvimento que vivemos há três ou quatro gerações. Fulminante, arrasador, esse estilo foi responsável pela proeza de transformar um país agrário num país industrial em poucas décadas. Ao mesmo tempo, soterrou -literalmente- as ligações com o passado.
É como se o crescimento material superasse a capacidade de absorvê-lo, deixando um rastro de destruição humana na forma de classes que não têm tempo de se fixar, antes de serem desfeitas, cidades abandonadas pela metade para serem recobertas por novas cidades igualmente provisórias.
Por tudo isso, foi grande o interesse quando se anunciou que a Cinemateca Brasileira havia restaurado um filme-documentário de 1929, "São Paulo, a Symphonia da Metrópole", dos imigrantes húngaros Adalberto Kemeny e Rudolpho Lustig, praticamente desconhecido fora do círculo de estudiosos.
Uma pequena multidão correu até o Cinesesc, quinta-feira passada, para disputar um ingresso nas duas sessões solitárias em que seria exibida a raridade. Na véspera, a reestréia para convidados, o filme foi solenemente aplaudido, como se para nós fosse o passado, não o futuro, a verdadeira conquista.
O vanguardismo técnico do filme contrasta com sua intenção edificante. O tom geral é de um ufanismo pueril e a platéia ri quando chaminés fumegantes de poluição, por exemplo, aparecem como prova inequívoca de progresso, ou a penitenciária é pintada em imagens obviamente falsas de instituição-modelo.
Mas há uma verdade fantasmagórica na matéria visível das cenas que o próprio fora-de-moda da narrativa futurista realça ainda mais, tornando-a perturbadora. Aquela mulher de sombrinha cruzou de fato aquela rua, aquela específica banana fez parte do lanche de uma criança que cresceu e talvez já esteja morta.
O "olhar" (como diríamos hoje) de Kemeny e Lustig é curiosamente etnográfico, aliás, como se praticassem uma história das mentalidades "avant la lettre": exceto pelos momentos de oficialismo patriótico, a maior parte são cenas cotidianas, o leiteiro, a feira, o trabalho na fábrica, o banho de piscina etc.
(Re)descobrimos que a cidade, além de aceitavelmente bonita, era mais proporcional, mais comensurável, que a sua atmosfera de ruas calçadas com paralelepípedos estava próxima de uma cidade do interior, onde ainda sentimos a respiração da natureza, animais à solta, carroças de verdureiros.
Não era preciso ver o filme para saber disso, mas nunca o soubemos tanto como depois de vê-lo. Deveria ser exibido em circuito normal, com a irônica trilha composta por Livio Tragtenberg e Wilson Sukorski, para não se repetir com a cópia restaurada o que aconteceu com o original; pior, com a própria cidade devastada.

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