São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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A memória de Heisenberg

OSVALDO PESSOA JR.

este é um livro de reminiscências lançado pelo Prêmio Nobel de física Werner Heisenberg (1901-1976) em 1969. É como se seus "encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política" levassem o leitor para uma caminhada numa montanha da Baviera. Momentos espetaculares de compreensão e aventura intercalam-se a caminhadas árduas e menos interessantes, ao longo da vida do brilhante cientista alemão, um dos fundadores da moderna teoria atômica e um aficcionado da música e do montanhismo.
A quem interessa este belo livro? Pelo menos três enfoques justificariam sua leitura. Em primeiro lugar, o volume é uma contribuição importante para a "história da ciência", apresentando reconstruções de conversas que Heisenberg travou com outros grandes cientistas. Em segundo lugar, o texto apresenta explorações pouco sistemáticas, mas certamente interessantes, em "filosofia da física". E em terceiro lugar, no campo da "ética e política científica", o livro descreve o contato que Heisenberg teve com o nazismo, a escolha de permanecer na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial e sua participação no programa nuclear alemão.
Este último tema é descrito nos capítulos 12 a 16. Após a Primeira Guerra Mundial, Heisenberg fizera parte do romântico Movimento da Juventude, que terminou sendo assimilado pelo Movimento Hitlerista. O anti-semitismo logo afastou Heisenberg dos hitleristas, mas a partir de 1933 ele teve que optar entre permanecer na Alemanha ou emigrar. Após uma conversa com o velho físico Max Planck, decidiu ficar em seu país para tentar manter seus alunos em uma "ilha de estabilidade" que sobreviveria à catástrofe. Aceitou passivamente o regime nazista e manteve sua posição de destaque na ciência alemã durante a guerra, quando participou do esforço para se fazer um reator nuclear e também a bomba atômica.
O relato que Heisenberg apresenta desta época naturalmente omite muitos detalhes e alguns episódios constrangedores. Nada é dito sobre sua não indicação para a cadeira de física teórica em Munique, em 1938, por não ser politicamente confiável, e a investigação que sofreu por parte da SS. Nada é dito sobre suas "visitas culturais" a territórios ocupados após 1942. O leitor interessado pode formar um quadro mais completo a partir da recente biografia intitulada "Uncertainty" (Freeman, 1992), escrita por D.C. Cassidy.
O mais valioso em "A Parte e o Todo" são os diálogos que o autor travou ou presenciou com os fundadores da física quântica. No capítulo 3, relata suas primeiras discussões com o austríaco Wolfgang Pauli, que no período 1920-22 estudava com ele em Munique, sobre a existência ou não de órbitas de elétrons dentro dos átomos. Heisenberg descreve também seu primeiro encontro com o dinamarquês Niels Bohr, que o impressionou por trabalhar muito mais com a intuição e a inspiração do que com cálculos formais. Segundo Bohr, quando se trata de átomos, a linguagem só pode ser usada como na poesia: átomos não seriam "coisas".
O capítulo 5 também é marcante, iniciando-se com uma descrição de como Heisenberg descobriu a chave para a nova mecânica quântica em 1925. Deixando de lado grandezas clássicas como posição e velocidade, concentrou-se nas grandezas diretamente observáveis na luz irradiada por átomos, como sua intensidade e frequência (cor). Descobriu que as entidades matemáticas que representam tais grandezas não comutam (ou seja, a ordem dos fatores pode alterar o produto). No ano seguinte, encontrou-se com o grande Albert Einstein e, vangloriando-se de ter seguido o exemplo deste (em sua teoria da relatividade restrita) de só considerar as grandezas observáveis em uma teoria física, recebeu a famosa resposta de que "é a teoria que decide o que podemos observar". O sentido dessa frase é explicitado no texto.
Uma outra jóia histórica é apresentada no capítulo 6, no relato das discussões travadas entre Bohr e o austríaco Erwin Schrõdinger, que descobrira uma nova formulação da mecânica quântica baseada numa equação de onda. Enquanto Bohr defendia que as descontinuidades observadas no mundo dos átomos eram um postulado da teoria, não podendo ser explicadas, Schrõdinger, em desespero, exclamava que "se toda essa maldita pulação quântica realmente tiver vindo para ficar, vou lamentar muito ter-me envolvido com a teoria quântica"! Neste capítulo, Heisenberg descreve como chegou a sua segunda obra-prima, o "princípio da incerteza", no trabalho de 1927 em que cunhou também a famosa expressão "redução do pacote de onda".
Mas até que ponto as reminiscências apresentadas pelo autor são historicamente corretas? Heisenberg deixa claro que seus relatos são reconstruções nas quais "o autor fez uma condensação livre, sacrificando detalhes". De fato, é possível encontrar pequenos erros no livro, como na passagem (pág. 58) em que o jovem Heisenberg se chocou com os panfletos distribuídos pelo físico Philipp Lenard em 1922 contra a teoria da relatividade de Einstein, que seria uma "especulação judaica, avessa ao espírito alemão". Heisenberg afirma ter ficado tão perturbado que não prestou a devida atenção à palestra dada por Einstein. Acontece que Einstein não proferiu aquela palestra, devido ao risco de sofrer um atentado! Heisenberg tivera seus pertences roubados e precisou faltar à palestra, que foi proferida por outro físico.
"A Parte e o Todo" está recheado de discussões e opiniões filosóficas e teológicas. Os capítulos 7 e 17 apresentam diferentes concepções religiosas de físicos atômicos da época; Heisenberg, por sua vez, mantém a crença de que podemos atingir a "ordem central" do mundo. O capítulo 8 apresenta a idéia heisenberguiana de "teoria fechada" e a tese de que as leis da física são necessariamente simples. Talvez a discussão mais interessante para um filósofo seja a avaliação crítica, no capítulo 10, que Carl von Weizsãcker e outros alunos em Leipzig fizeram do apriorismo de Kant, à luz da nova teoria atômica. Outro ponto muito importante são as distinções que Bohr, Pauli e Heisenberg apontam entre suas posições e o positivismo lógico em moda na época (capítulos 3 e 17).
O original em alemão, "Das Teil und das Ganze" (1969), teve uma tradução não muito boa em inglês: "Physics and Beyond" (1971). A tradução que a Editora Contraponto nos oferece do texto inglês é muito boa, tendo sido cotejada com a edição alemã e sofrido uma revisão detalhada. Este mesmo livro, porém, já foi traduzido em Portugal com o título "Diálogos sobre Física Atómica" (Verbo, 1975).
O livro termina com um retorno ao platonismo que já havia influenciado Heisenberg em sua juventude. O rumo tomado pela física de partículas na década de 60, segundo o autor, substituiu o atomismo de Demócrito, segundo o qual "no começo era a partícula", pelos poliedros regulares de Platão: "No começo era a simetria".

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