São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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Um artista multimídia

CARLOS AUGUSTO CALIL

o extraordinário filme silencioso que Mário Peixoto realizou em 1930-31, aos 22 anos, "Limite", viria a se transformar no maior mito do cinema brasileiro. Sua construção contou com os ingredientes de praxe: audácia formal, anacronismo, pouca exibição, megalomania e, é claro, capacidade de despertar paixões. Nesse domínio, com a conivência só aparentemente desinteressada do seu autor, estabeleceu-se um verdadeiro culto a "Limite". A aura de filme misterioso, passível de suscitar prazeres estéticos apenas para iniciados, foi durante longo tempo sustentada por intelectuais desapontados com os rumos do cinema que se vulgarizava com a introdução do som.
Nem bem concluíra "Limite", Mário Peixoto embarcava em outro projeto, "Onde a Terra Acaba", desinteressando-se pela sorte de sua primeira obra. Ademar Gonzaga, o ambicioso crítico que acabava de fundar, em moldes industriais, a produtora Cinédia, incumbiu-se da distribuição de "Limite", mas esbarrou na indiferença dos exibidores, preocupados muito justamente em sondar os desígnios das platéias, já àquela época conquistadas para a novidade que vinha de fora: o cinema falado.
Desse modo, "Limite" viu-se privado da perspectiva de encontrar o seu público que, mesmo não sendo numeroso, daria ao filme uma inserção histórica de que se ressente até hoje. Ficou assim rotulado como "insólito", "difícil", " a exigir uma educação, tanto no domínio do cinema quanto no do poético". Filme sem "descendentes", de remotos parentescos com obras célebres do período silencioso -"Terra", "Que Viva México!", "A Linha Geral" e "Homem de Aran"-, "Limite" não estaria amparado em teoria prévia, "ele mesmo" constituindo sua própria "teoria" (1). Os exegetas de "Limite" -Octávio de Faria, Plínio Sussekind Rocha e Saulo Pereira de Mello, o discípulo devotado- o vêem como um fenômeno isolado na cultura brasileira, que a ela transcende para tornar-se a única contribuição nacional ao congresso do mundo.
O leitor já sabe: independentemente do valor de "Limite", que aliás é imenso, estamos diante de conceitos que resvalam para o campo dogmático, no qual o que conta é a fé e a intensidade da confissão. Nesse quadro, a contribuição de Saulo é insubstituível. Responsável pela restauração do filme, concluída em 1971, reuniu ao longo de mais de 20 anos um acervo de informações que a sua generosidade o impelia a compartilhar: assim nasceu o projeto do Arquivo Mário Peixoto, aberto em julho último na produtora carioca Videofilmes. E, para celebrar o acontecimento, a Casa de Rui Barbosa apresentou uma bela exposição, que se fez acompanhar de um catálogo admirável, ricamente ilustrado, e cujo texto nos dá a crônica mais completa da vida e obra de Mário Peixoto. Amorosamente concebidos, uma e outro merecem viajar, para ampliar o rol dos beneficiários de um trabalho que tem a marca positiva da obsessão.
Saulo aproveitou a oportunidade para lançar pela Rocco, na coleção Artemídia, um livro de ensaios sobre "Limite", que reúne, condensa e completa estudos anteriores e, pela Sette Letras, três obras de Mário Peixoto: o "cenário" (palavra com que se designava o roteiro no cinema silencioso) original de "Limite" e as reedições do livro de poesia "Mundéu" e do romance "O Inútil de Cada Um". O filme é de 1930-31; o livro de poesia, de 1931; e o romance, de 1933. No curto período de quatro anos, Mário Peixoto preparou-se para ser o nosso primeiro artista multimídia. Quando morreu, em 1992, era ainda praticamente inédito: nem filme, nem livros tiveram distribuição.
Se "Limite" chamou a atenção dos intelectuais egressos do Chaplin Clube, "Mundéu" arrancou de Mário de Andrade uma resenha vibrante, em que aponta no jovem autor uma "naturalidade que espanta" e reconhece em três poemas do livro "legítimas obras-primas". "São poemas que nascem feitos, explosões duma unidade às vezes excelente, em que o movimento plástico das noções e das imagens é incomparável dentro de nossa poesia contemporânea" (2). Semelhante juízo se ajusta perfeitamente a "Limite", mas Mário de Andrade desconhecia a existência do filme. Não o menciona na carta que manda a Augusto Meyer: "Você me pergunta quem é esse poeta Mário Peixoto. É um fluminensinho destanhico, feinho, almofadinha, diz o Manuel Bandeira que já fui apresentado a ele uma vez na casa do Álvaro Moreyra (...). Não me lembro absolutamente dele, mas o livro é excelente..."(3).
Lido hoje, por alguém já familiarizado com "Limite", "Mundéu" chama a atenção pela persistência de alguns temas -o da fatalidade, o da resignação à vida-, de algumas imagens recorrentes na obra de Mário Peixoto -olhos que atormentam-, culminando com a insinuação de um amor homossexual, impossível de se realizar sem a transgressão das normas sociais, internalizadas pelo eu lírico. "Mundéu" se destaca ainda pelo domínio do ritmo impresso aos poemas e principalmente pela presença determinante da natureza. Ora, a ciência do ritmo e a aguda percepção da natureza são elementos decisivos para a realização superior de "Limite".
Em seu estudo, Saulo observa, com propriedade, que Mário Peixoto era antes poeta que narrador. "Limite" tem justamente a capacidade de deslocar, de uma suposta neutralidade, imagens da natureza para o campo da subjetividade. A descrição dos fenômenos naturais é assim substituída pela sua construção formal, em que predomina a autonomia da câmera-lírica, que se movimenta com uma liberdade assombrosa, por já ter sido alçada ao plano de personagem.
A leitura do "cenário" original de "Limite" adiciona um elemento novo à questão da subjetividade do narrador. Desconhecia-se o grau de elaboração prévia desse recurso e o nível da visualização já presente na idéia de "Limite". Um dos mais belos e elaborados planos desse filme, quando a câmera nos mostra a caminhada da mulher nº 2, que demanda a estrada para buscar refúgio na solidão do penhasco, é composto de um movimento circular -com aproximações e recuos- em torno do corpo dela, sem mostrar-lhe o rosto. A câmera abandona então a personagem e dirige-se a uma cerca de madeira que margeia a estrada. Próxima à cerca, revela-nos uma flor fragílima que a imagem em contraluz valoriza. Pois bem, esse plano, que parecia ter sido concebido pela livre inspiração no calor da filmagem, está perfeitamente previsto no "cenário" ora publicado e nele ganhou o número 82.
Romance psicológico, da hipersensibilidade do observador, "O Inútil de Cada Um" transcorre em ambiente aristocrático e trai óbvia filiação proustiana, além de valer-se do recurso consagrado por Sterne quanto à escansão do tempo. "E do ângulo da almofada onde recosto, disseco-lhe as menores reações. São dessas frações que rendem anos, aproveitadas na exata." "Tomo os meus gestos com a precisão de um meticuloso, e do mesmo, doso minhas expansões íntimas." O narrador que empreende a dissecação dos seus sentimentos não logra alcançar a adesão do leitor, seja porque não pode passar-lhe a impressão de sinceridade (é um romance à clef), sem a qual a identificação é impossível, seja porque se perde em planos que se desdobram sucessivamente, diluindo a busca da emoção que uniria o narrador ao seu leitor. Nesse romance de educação sentimental, a escrita se apura nas descrições, elaboradas segundo um eficiente estilo cinematográfico, em que a câmera-caneta descansa o leitor das nuances do ser psicológico.
A obra de Mário Peixoto, que ora nos é revelada pela dedicação de Saulo Pereira de Mello, é quase monotemática: remete à renúncia ao mundo adulto (das convenções e da repressão). Rito de passagem que não se consuma, seu jovem autor, dotado de uma maturidade artística precoce, consagra a morte do desejo, o "eu queria, mas não podia", com que encerra seu "O Inútil de Cada Um". Obra juvenil, fala ao coração dos jovens.

Notas:
1. Mello, Saulo Pereira de, "Limite", Rio de Janeiro, Rocco, 1996, págs. 13, 16, 71, 88, 99.
2. Andrade, Mário de, "A respeito de 'Mundéu"', "Revista Nova", São Paulo, ano 1, 15/12/1931, in Peixoto, Mário, "Mundéu".
3. "Mário de Andrade Escreve Cartas a Alceu, Meyer e Outros", Fernandes, Lygia (org.), Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1968, pág. 98.

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