São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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Cultura como propaganda

SERGIO MICELI

numa crônica dos "Ensaios Literários", Manuel Bandeira se refere ao jornal "A Manhã" como um daqueles espaços culturais criados pelo Estado Novo em que a nata dos intelectuais podia escrever sem maiores riscos de envolvimento com o regime. Mas a partir de fins de 1943, em seguida ao Manifesto dos Mineiros e em meio aos avanços da redemocratização, o mesmo Bandeira achou melhor sustar sua colaboração.
Mário de Andrade constitui outro caso de postura ambivalente diante dos espaços e instituições culturais abertos após 1937. Ele queria guardar distância, por exemplo, de Gilberto Freyre, de "A Manhã", da "fachi-nazi-luso-dip-getulidútrica" revista "Atlântico" (empreendimento conjunto do Secretariado Nacional de Propaganda salazarista e do Departamento de Imprensa e Propaganda/DIP), de todos e de tudo que lhe parecia impregnado por uma sintonia excessiva com Vargas. Mário consolava-se com exorcismos e imprecações quando acabava de fato colaborando; ao mesmo tempo, se empenhava com entusiasmo em participar ativamente de diversas iniciativas deflagradas pelo Serviço do Patrimônio. Os volumes de sua correspondência registram dezenas de episódios em que o leitor desacostumado às alianças do período fica meio sem saber as razões pelas quais ele aceita ou recusa uma determinada oferta.
E o mesmo ocorria com aqueles intelectuais do período cujas expectativas de reconhecimento dependiam de um sentido apurado para identificar os veículos, as instituições e sobretudo os companheiros, que poderiam ou não valer a pena. A linha divisória entre o bem e o mal, às vezes coincidindo em medida variável com o que então se entendia por esquerda e direita, tinha a ver com as fumaças de autonomia de que se investiam certas lideranças perante os detentores do poder político. Havia como que um reconhecimento tácito de enxergar certos arranjos, espaços e veículos como reservas de valor e legitimidade ao alcance de um dado círculo de sociabilidade em detrimento das pretensões dos demais.
Na prática, tudo se passava como se existisse uma linha de demarcação entre as iniciativas culturais desenvolvidas na órbita do DIP e aqueles empreendimentos com chancela do Ministério da Educação sob comando de Capanema. Os pleitos de legitimidade de autores e obras poderiam até mesmo ser hierarquizados em função do acesso diferenciado a esses dois setores estratégicos no interior do campo de produção cultural. Todavia, a premência de ganhar dinheiro, entre outros fatores, contribuía para amaciar resistências e aplainar o trânsito de quase todos os que se viam e eram vistos como os "melhores" naqueles veículos considerados mais comprometidos com interesses políticos do regime.
O novo livro da cientista política e historiadora Angela de Castro Gomes examina justamente duas publicações dependentes dos serviços de propaganda do Estado Novo: o suplemento "Autores e Livros" do jornal "A Manhã" (cujos responsáveis eram Múcio Leão e Cassiano Ricardo) e a revista "Cultura Política" (dirigida por Almir de Andrade, autor de um dos clássicos doutrinários encomendados pelo regime, o volume intitulado, sem piada, "Força, Cultura e Liberdade"). Por intermédio desses veículos, criados em 1941, pretende-se reconstruir a "cultura histórica" do período com a análise de textos e materiais coligidos nas fontes mencionadas. Ao examinar o suplemento "Autores e Livros", seu objetivo é definir quem estava sendo nomeado como historiador nos anos 40 e o que "estava sendo entendido e postulado como saber histórico e ofício de historiador".
Na segunda parte, centrada na revista "Cultura Política", a autora focaliza o lugar da história no discurso estado-novista, o que se entendia por "recuperação do passado brasileiro" no arraial dos responsáveis pela política de publicidade dos feitos e metas do governo Vargas e os sentidos dessa narrativa mítica em processo de reelaboração. Em ambas as publicações, a análise lida com textos destinados à divulgação de uma produção cultural "elevada" para um público educado mais amplo, ou melhor, com matéria-prima editorial destinada a cumprir funções práticas de inculcação pedagógica e não com escritos de teor autoral inédito destinados a uma circulação entre pares.
Como a própria autora admite, seu trabalho não consegue furtar-se a problemas ardidos que decerto ela teria preferido contornar, como, por exemplo, as relações entre os intelectuais e o Estado, as condições sociais de constituição de disciplinas e gêneros de trabalho intelectual, os padrões de parceria e competição envolvendo diferentes redes de produtores intelectuais e artísticos numa conjuntura de expansão tão acelerada das instituições culturais como aquela do Estado Novo.
A primeira restrição ao método empregado se prende ao fato de se haver procedido com as fontes selecionadas para análise como se fossem textos de uma dicção culta, para cujo esclarecimento não se faz menção seja às características sociais do público-alvo, seja a uma etnografia, mesmo que sumária, das trajetórias de seus mentores. Ainda que se conheçam as dificuldades para elaborar um perfil consistente do público atingido por essas publicações, existem informações abundantes a respeito das tomadas de posição políticas de Cassiano Ricardo em movimentos nacionalistas de inspiração autoritária, da folha de serviços políticos prestados por Múcio Leão ou, então, da ambição temática e desorientação teórica de Almir de Andrade em suas obras ditas "científicas".
Estou sugerindo um cardápio sociológico dietético que, sem muita pose, traria subsídios indispensáveis à compreensão do argumento. Uma vez que os responsáveis pela política cultural do Estado Novo pareciam interessados em reelaborar o "sentido" da história nacional, concatenando eventos, personagens, linguagens e conteúdos modeladores de uma narrativa não destoante da cantilena autoritário-preservacionista do regime, a análise empreendida por vezes se acomoda em excesso às deixas pontuadas pelos editores em lugar de proceder a uma leitura menos condescendente dos textos. Neste livro, em particular, a análise textual clama por elementos esclarecedores do contexto.
O suplemento "Autores e Livros", concebido como veículo coordenador da vida intelectual, prestava homenagem, a cada domingo, a "um autor considerado relevante na trajetória cultural do país". Os 20 "historiadores" (1) assim consagrados entre 1941 e 1945 nasceram quase todos no último terço do século 19 e morreram nas décadas de 20 e 30. Alcançaram a maturidade intelectual na virada do século, firmando-se como autores de "estudos históricos", apesar de muitos deles terem produzido poesia, prosa e ensaio político-social. O retrato sociológico do grupo se faz em cores demasiado berrantes, borrando matizes que, se bem trabalhados, talvez viessem reforçar as linhas de força da interpretação. Afirma-se, por exemplo, que esses historiadores são, em sua maioria, bem-nascidos e bem-educados, pertencendo entretanto às frações políticas e não aos setores proprietários dos grupos dirigentes. A pista quanto à disjunção entre capital social e força econômica nessas biografias não é tematizada sequer para uma compreensão melhor fundamentada dos rompantes de independência intelectual identificáveis em quase todos os projetos coletivos da geração de 1890 ("Revista Brasileira", Academia Brasileira de Letras/ABL etc.).
Afora a exceção indicada no texto, o caso de Rocha Pombo, o grupo analisado inclui alguns outros poucos intelectuais de origens modestas que, apelando ao compadrio, ao parentesco de afins trunfados e ao autodidatismo, lograram viabilizar um caminho pessoal de autonomia social e profissional. Talvez fosse prudente examinar tais trajetórias e averiguar o impacto dessas experiências fora de esquadro, em vez de desbastar a variedade de ocorrências com vistas à construção na marra de um perfil sociológico uniforme. Foi justo essa geração de intelectuais-jornalistas -tão caudatários de suas atividades na imprensa num período de restritas oportunidades de publicação- que fundou a ABL em 1898, fazendo com que algumas de suas figuras estelares tivessem lastro institucional para se constituírem em modelos de excelência em diversos gêneros do trabalho intelectual.
Essa geração sinalizou um patamar de maior independência em relação aos padrões de legitimidade importados dos países centrais e, ainda mais relevante, propiciou parâmetros internos originais aos profissionais da atividade intelectual. Embora a ABL tenha constituído um domínio de soberania possível para a produção intelectual em relação ao sistema político naquela conjuntura, a maioria desses historiadores desenvolveu uma carreira política expressiva, tornando praticamente indissociável a atividade intelectual do seu desempenho como ministros, governadores, parlamentares e diplomatas. Tais padrões se ajustavam às necessidades de justificação das práticas político-ideológicas dos intelectuais atuantes no Estado Novo, não sendo de surpreender que tenham tomado como objeto de eleição esses precursores de uma tradição de dependência insubordinada em relação aos detentores do poder político.
Se "a idéia que o suplemento deseja passar é justamente a da compatibilidade entre esses desempenhos, sem prejuízo para nenhum deles, especialmente sem mácula para a condição de intelectual", talvez se devesse refletir acerca do teor normativo que inspira esse modelo de inteligibilidade do trabalho intelectual na sociedade brasileira. Ele mesmo, disfarçado numa roupagem de vistoso relativismo, também foi de algum modo incorporado pela autora. As obras "históricas" produzidas pela maioria desses historiadores foram quase sempre redigidas no aceso da luta política, podendo-se assim reconstruir as circunstâncias que estão na raiz de um perfil inequivocamente militante. Nada disso tem a ver com um modelo típico-ideal do ofício de historiador na tradição nacional como, às vezes, a análise sugere com discreto tom nostálgico. A experiência intelectual dessa geração consagrada por "Autores e Livros" estava fadada a desaparecer por força da crescente diferenciação e especialização de um sistema de produção intelectual nucleado na instituição universitária. No meu entender, o esforço de construção social e intelectual desse panteão nativo de sumidades da historiografia se enquadrava num projeto ambicioso de propaganda doutrinária e política, dimensão praticamente esquecida pela análise.
No caso da revista "Cultura Política", a propaganda assumia um tom mais escancarado de proselitismo. Em vez de privilegiar a construção de uma galeria de historiadores insignes, o foco da análise se concentrou no mapeamento das categorias utilizadas. A montagem dessa "cultura" épico-nativista se fez sobretudo por meio da seção "História", para a qual escrevia um grupo de intelectuais de pouco renome e destituídos de uma obra inovadora. Apesar de alguns deles terem alcançado mais tarde um certo nível de reconhecimento (entre os quais José Maria Belo, Djacir Menezes, Brito Broca e Hélio Viana), o primeiro time de intelectuais da época não colaborava na revista, com as exceções de Graciliano Ramos e Marques Rebelo, então em início de carreira, relegados às seções de usos e costumes regionais. Os colaboradores habituais eram quase todos professores secundários, membros dos institutos históricos e geográficos estaduais, funcionários públicos de alguma nomeada e militares. Os exemplos transcritos mostram que eles estavam dispostos a redigir matérias ajustadas às diretrizes pautadas pelos responsáveis editoriais.
A despeito da relutância da autora em admitir qualquer leitura das matérias como sendo indicativas de uma política orientada pelos interesses do governo Vargas, temendo a pecha de desatenção à "majestade" da obra intelectual, quem sabe o caminho mais fecundo fosse algo distinto daquele adotado? Não estou propondo uma causalidade estrutural postiça, com um Estado onisciente plasmando seus intelectuais, nem tampouco considerando textos de circunstância como se fossem obras literárias. Em lugar de insistir na idéia de que a revista "Cultura Política" estivesse operando como uma destilaria de conceitos de base para o "espírito" do período, conviria deslindar os procedimentos adotados por esses intelectuais-funcionários para a versão culturalista e folclórica da sociedade brasileira aí veiculada. Os três mitos fundantes dessa ideologia do povo brasileiro -gente mestiça, valente e republicana- mereceriam uma leitura crítica menos colada às evidências literais abonadas pelos textos.
Uma pista importante de como se poderia proceder nos é dada pelo empenho dos responsáveis em repaginar os feitos do Estado Novo, dando-lhes um sentido histórico de teor similar àquele conferido aos momentos-chaves da história brasileira. Assim, por exemplo, o discurso proferido por Vargas em outubro de 1940, "pelo sentido de brasilidade profundo", é publicado com status idêntico àquele de que se revestem os documentos sobre a expulsão dos holandeses ou os relativos à Guerra do Paraguai. Estratégia semelhante de canonização antecipadora foi assumida pelo Estado Novo em relação ao prédio recém-construído para abrigar o Ministério da Educação, cujo tombamento pelo Serviço do Patrimônio foi providenciado tão logo concluída a obra.
As publicações analisadas deram sua contribuição ao esforço publicitário desencadeado junto aos meios de comunicação de massa emergentes pelos serviços do DIP, sujeitando obras, autores e conceitos "históricos" a um tratamento diluidor, de forma que pudessem atender funções eminentemente práticas de convencimento e persuasão. A despeito das discordâncias, o livro de Angela é um trabalho admirável. Escrito em linguagem fluente, enxuta e de rigor invejável, o texto oferece momentos luminosos de análise: a percepção da fortíssima conotação espacial da narrativa histórica e consequente abundância de metáforas geográficas no discurso construtor da nacionalidade; as contradições entre o projeto de crescente autonomia intelectual da geração de fundadores da ABL e os constrangimentos políticos a que se vê submetida; a maciez interpretativa do léxico conceitual da revista "Cultura Política". Devo talvez admitir que a proposta da autora apóia-se numa linha coerente de interpretação que dispensa o recurso a fatores externos àqueles equacionados pelo seu argumento.

Nota:
1. Francisco Varnhagen, João Francisco Lisboa, Barão do Rio Branco, Capistrano de Abreu, Eduardo Prado, José de Alcântara Machado de Oliveira, Rocha Pombo, Oliveira Lima, Alfredo Ferreira de Carvalho, Barbosa Lima, Pandiá Calógeras, João Ribeiro, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Alfredo Taunay, Carlos de Laet, Paulo Setúbal, Gonçalves de Magalhães, Afonso Celso e Pedro Lessa.

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