São Paulo, segunda-feira, 17 de fevereiro de 1997
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Ode ao soldado desconhecido

LUÍS NASSIF

Paulo Francis e Edmundo Juarez tinham poucas, porém algumas coisas em comum. Ambos estavam perto dos 70, a seus modos tinham carreiras públicas, morreram de infarto este mês e passavam por dissabores profissionais.
Os dissabores, no entanto, tinham estatura diversa.
A danação de Francis decorria de processo provocado por acusações graves contra pessoas, sem dispor de provas. A de Juarez, por ter sido impedido de salvar brasileiros, com a vacinação nacional contra o vírus da hepatite tipo B.
Francis morre incensado, como destruidor de reputações; Juarez, apenas respeitado em circuito restrito, como defensor da vida. É um critério torto e raso de avaliar atuações, impede que se separem os homens públicos dos homens apenas notáveis -conferindo àqueles o devido reconhecimento.
Pequenos assassinatos
Juarez era presidente da Fundação Nacional de Saúde. Foi colega de faculdade do ex-ministro Adib Jatene. Depois, foi inoculado pelo vírus da saúde pública. Virou sanitarista, fez carreira na USP, chegou a professor titular de epidemiologia, e acompanhou Jatene em sua ida ao Ministério da Saúde.
Lá, uma de suas grandes batalhas foi tentar erradicar a hepatite tipo B, mais letal do que o vírus da Aids, mais abundante no norte do que os rios que banham a bacia Amazônica.
E aí Juarez, espanhol, comunista e protestante, dono de uma chama sagrada de vocação pública, que jamais se apagou, foi destruído por uma soma de pequenos assassinatos que compõem a cultura burocrática brasileira.
O primeiro foram as distorções na Lei das Licitações, que permitiram o florescimento de uma nova modalidade de golpe: a indústria dos embargos. Monta-se uma empresa de fachada, oferece-se um preço irreal e mela-se a licitação. Depois, vai-se achacar os demais participantes, para abrir mão da ação judicial.
No caso, a empresa de fachada chamava-se MD2, registrada em Miami como bar e restaurante, e participante de um consórcio com o laboratório brasileiro Sainel e o chinês Xangai Institute.
Em vez de vacinar pessoas, a FNS precisou paralisar todo o processo, submeter as vacinas a especialistas. E sofrer mais atrasos depois que o dono do laboratório brasileiro foi assassinado.
Em todo caso, o golpe da MD2 permitiu ao Ministério da Saúde e à FNS driblar outra irracionalidade da Lei das Licitações. Esta, impede leilões em licitações normais. Com a licitação melada, a FNS conseguiu promover leilão entre os governos da China e de Cuba, que derrubou o preço da vacina para US$ 0,99. Sinal de que mais brasileiros poderiam ser vacinados? Nem pensar.
Burocrata
Aí entra em cena outro personagem: o burocrata revestido de poderes. No caso, sob o RG de Barjas Negri, economista colocado no cargo de secretário-geral do Ministério da Saúde, com função de interventor.
A intenção de Juarez era vacinar todos os grupos de risco do país, incluindo a população amazônica, profissionais da saúde, e pessoas que mexem com a floresta, como os soldados.
A intenção de Negri era cortar despesas. Com base no parecer do dr. Antonio Joaquim Werneck de Castro -secretário de Assistência à Saúde, que administra as verbas do Inamps e que, portanto, concorre com os recursos da FNS- deliberou que apenas crianças até um ano de idade seriam vacinadas.
Não adiantou Juarez lembrar que crianças não fazem parte de grupo de risco e que, portanto, era uma economia de néscio. Dono do dinheiro, Negri não quis discussão. E tornou-se o sanitarista do ministério. Em vez de economizar, passou a gastar mal os parcos recursos disponíveis.
Despedida
Juarez pediu demissão com uma carta amarga. "Pessoalmente, aos 68 anos de idade, professor titular da Faculdade de Medicina, tenho o direito de receber tratamento digno das pessoas com quem trabalho. É insuportável admitir que o senhor secretário-executivo, economista e jovem, tenha a visão dos problemas sociais brasileiros atrelados a cifras econômicas, se para tanto desrespeita pessoas e conceitos éticos, deixando de lado suas obrigações de cidadão que cresceu à custa do empenho da sociedade, esquecendo os excluídos e os esquecidos."
O velho soldado morreu no fim-de-semana passado.

E-mail: lnassif@uol.com.br

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