São Paulo, segunda-feira, 17 de fevereiro de 1997
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Brasil precisa de um banco de histórias

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Serra de Petrópolis. O ziguezague do carro sacode nossas cabeças. Converso com Lucy Barreto sobre um velho sonho: um banco de histórias brasileiras.
A idéia é simples: a indústria audiovisual vai crescer em todo mundo e haverá um nicho, cada vez maior, para os brasileiros. A matéria-prima dessa explosão serão as histórias, tenham ou não princípio e fim, pé ou cabeça.
Os Barreto são muito sensíveis nesse campo e, dentro de seus limites, trabalham com antecipação. Recentemente, compraram os direitos do livro "Flores Raras e Banalíssimas", de Carmen L. Oliveira, com o objetivo de filmar a história de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares, um complexo diálogo entre duas mulheres e duas culturas.
Outra biografia que está aí à espera de quem se interesse por ela é a de Artur Bispo do Rosário, o grande artista louco que reconstruiu o mundo da sua cela da colônia Juliano Moreira. A construção da obra de Bispo, assim como sua paixão pela estagiária de psicologia que o visitava, são pedras de uma boa construção romanesca.
Na medida em que serpenteávamos a serra, iam ficando para trás as histórias consagradas e entravam em cena os pequenos fatos cotidianos. Como o do jovem crente que todos os dias rezava numa pedra, num subúrbio do Rio e, de repente, no auge de suas orações, foi fulminado por um raio.
Mas isso dá uma história? Não necessariamente. Mas é um bom começo. A notícia repercutiu na sua pequena comunidade religiosa. O pastor teve de explicar aos crentes. Que discurso escolheu? O de que a crucificação era apenas um começo e estamos todos aqui para continuar o sofrimento de Cristo? Ou, no estilo de Bergman, resolveu admitir logo que tanto a virtude como o pecado eram absolutamente aleatórios, que nada se poderia esperar deles?
O tema era um pouco pesado para uma viagem de carro. Lembrei-me de um deputado que prometeu me relatar, para efeito de documentação, algumas de suas aventuras. Ele é vice-líder do governo, tem um pequeno avião e opera lá em cima, na Amazônia, nas fronteiras da audácia.
Um dia, um navio americano encalhou perto de uma ilha e não havia como tirá-lo. Nosso herói foi aos Estados Unidos fazer uma reunião com a empresa interessada em salvar o navio e propôs:
- O navio, não consigo tirar dali. Mas a ilha, sim. Vou tirar a ilha, vocês levam o navio.
O interessante é que seu plano deu certo.
Descíamos a serra com uma cascata de histórias. Ela me lembrou que nos Estados Unidos quase todo mundo tem seu roteiro de cinema em preparação. Cerca de 25 mil projetos são comprados anualmente. Desses, apenas 2.500 são desenvolvidos em forma de roteiro mesmo e talvez 500 sejam filmados.
Isso não explica a riqueza da indústria norte-americana mas, de certa forma, fortalece o seu ritmo. O mercado estimula os autores que, por sua vez, impulsionam o mercado com seus achados.
Muitas vezes tive vontade de me dedicar só a isso. A coletar histórias no Brasil, reuní-las, desenvolver algumas, deixar que outros desenvolvam as restantes.
Não é preciso ser um Guimarães Rosa, capaz de transfigurar histórias e personagens. Basta recolher matéria-prima, colocá-la sobre a mesa, voltar ao campo para preencher as lacunas, e deixar que outras mãos acabem modelando as formas elementares que você colheu.
Na verdade, você passa a ser um elo na grande indústria do audiovisual, como o repórter é um elo na indústria da informação. Com a vantagem talvez de que os recursos sejam maiores para filmes do que para documentários.
Sei que o governo também está pensando nisso, recolhendo projetos e colocando-se à disposição de financiadores. O esforço do governo é louvável mas as coisas têm de ganhar ritmo no próprio mercado.
A sensação que tenho no Brasil é a de que trabalhamos muito apertados -uma idéia de cada vez. É preciso haver abundância, quem sabe até um ligeiro desperdício.
Quantas histórias nós temos de um ex-presidente que revê sua passagem pelo poder dirigindo um carro esporte pelas ruas de Miami? Se tivesse vivido nos EUA, mais do que histórias, creio que o próprio filme já estaria pronto.

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