São Paulo, segunda-feira, 17 de fevereiro de 1997
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Purificação dos mortos

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Comunismo e religião, como se sabe, não combinam. O velho regime soviético chegou mesmo a violar tumbas de santos da Igreja Ortodoxa.
Demonstrou que não havia sob a laje corpos intactos, como imaginavam os fiéis, mas apenas cinzas. E reforçou o culto à múmia de Lênin, o santo do Estado.
No Brasil, não há um mísero santo reconhecido pela Igreja Católica. Fernando Henrique, ele próprio um ex-devoto do materialismo, queixou-se ao papa.
Mas não dependemos da benevolência do Vaticano para colecionar santos. Nossos mortos são santos natos, eis o que se deseja realçar.
O brasileiro nasce e cresce sob a pele de homem. Mas fenece como santo. Entre nós, a morte é de uma eficácia promocional hedionda. Ela lava biografias, higieniza reputações. Os cemitérios são hortas de virtudes. O morto com defeitos é uma utopia.
A morte não parece guiar-se por critérios lógicos. Ela canoniza a todos -de Leonardo Pareja a Tancredo Neves. Recorde-se, por oportuno, que ambos desceram aos respectivos túmulos enrolados à bandeira nacional.
Paulo Francis e Mário Henrique Simonsen engrossam agora a galeria de santos. Deixaram a vida para ingressar na glória do culto à personalidade. Foram pintados como gênios em vários artigos e comentários.
Perdoaram-se-lhes todas as fraquezas: o preconceito de Francis; sua irresponsabilidade jornalística, materializada em comentários por vezes desplugados da realidade; o desempenho pífio de Simonsen no ministério.
Suas trajetórias foram como que filtradas, num tolo e desnecessário processo de purificação biográfica. Tolo porque ineficaz. Desnecessário porque a menção dos defeitos não apaga as virtudes de Francis e Simonsen.
Todos terminaremos, de resto, como os santos da Igreja Ortodoxa. Cedo ou tarde, o pó nos unirá. Pode-se retardar a verdade, como no caso de Lênin, jamais evitá-la.

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