São Paulo, terça-feira, 18 de fevereiro de 1997
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Só falta batizar

JANIO DE FREITAS

Quanto mais firulas, mais enganação. Diante da pomposa reabertura do Congresso, pode-se perguntar: e se o Congresso continuasse fechado, que efeito isso teria? Nenhum. Efeito prático, para o país, nenhum. A razão de ser de um Congresso é o exercício da função de Poder Legislativo, ou seja, de fonte das leis a serem aplicadas pelo Poder Executivo e resguardadas pelas decisões do Poder Judiciário. Mas o Congresso, como todo e nos seus componentes Câmara e Senado, há tempos abdicou da função legislativa. Logo, é nada.
No dia mesmo de sua reabertura, a nulidade do Congresso foi expressada por várias de suas figuras mais proeminentes. E declarada prioritária entre as novas realidades que devem ser proclamadas como características do regime, ainda por ser batizado, que está surgindo sobre as ruínas da construção democrática iniciada em 88, com a Constituição pós-militarismo.
Já muitos disseram, no Congresso e fora dele, governistas e opositores, que o Brasil está sendo legislado e governado por Medidas Provisórias. Toda a iniciativa de legislação é do Poder Executivo, cabendo ao Legislativo, quando muito, pespegar o seu carimbo. Quando muito, está dito, porque até isso se tornou desnecessário: o Congresso não põe as MPs em exame nem votação e o Executivo, vencida a validade de cada uma aos 30 dias, reedita-as em torrentes, de cambulhada com as novas que não param de jorrar.
Diz a ex-Constituição que as MPs podem ser emitidas "em caso de relevância e urgência". E, "se não forem convertidas em lei (o que depende de aprovação do Congresso) no prazo de 30 dias", "perderão eficácia, desde a edição". Tão ostensivo tornou o desrespeito da Presidência da República a este artigo da Constituição, que, na tentativa (inútil) de não se mostrar co-responsável pelas seguidas agressões ao regime constitucional, José Sarney, então presidente do Congresso, criou uma comissão para "disciplinar o uso de MPs".
Relator, ou autor do projeto de fórmula para "disciplinar": José Fogaça, senador do PMDB gaúcho sempre citado como candidato a um ministério, qualquer ministério, no governo de Fernando Henrique. Não será aqui que se atribuirá a fórmula a José Fogaça ou a qualquer outro senador, e não à Presidência da República. O que, aliás, não tem importância, desde que os maiorais do Senado e da Câmara se curvaram depressa à fórmula, protelando sua aprovação apenas porque a ordem era protelar tudo até Fernando Henrique adquirir os votos para a reeleição.
O resultado da fórmula será institucionalizar a abdicação do Legislativo à função de legislar, mas aliviando as aparências da agressão do Executivo, com seus milhares de MPs, ao regime democrático. O primeiro passo para isso é ampliar, de 30 para 90 dias, o prazo em que a MP precisa ser reeditada, se ainda não aprovada pelo Congresso. O governo continuará legislando e governando por MPs, à margem do Congresso, mas sem precisar emitir tantas MPs, que o expõem a riscos gravíssimos - embora seja muito remota a hipótese de que o Supremo Tribunal Federal se impusesse como guardião, que lhe cabe ser, do corpo e do espírito da Constituição.
Se, com a vigência de 30 dias, já os congressistas se consideram justificados, com o argumento de que derrubar MPs retroativamente criaria o caos, com prazo maior nem se diga. Mas a fórmula quer mais: quer cada MP deixe de ser examinada por uma comissão (dita) competente, encaminhando-se todas a uma só comissão. O inevitável acúmulo de MPs nessa comissão será uma desculpa eterna para que o Congresso continue sem as submeter às votações devidas. Um complemento eficaz para a dilatação do prazo de vigência e renovação.
Era a partir de tal fórmula que os novos dirigentes do Senado e da Câmara, com o coro de numerosos parlamentares, davam entrevistas na reabertura do Congresso com um tema central: a quantidade de MPs é excessiva (a fórmula as reduz, pela menor necessidade de reedição) e é preciso regularizá-las. "Em harmonia com o Executivo", como disse o presidente do Congresso, Antonio Carlos Magalhães.
Em harmonia com a Constituição, ninguém falou. Afinal, a Constituição está ultrapassada: tão caduca, coitada, fala até em existência de Poder Legislativo.

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