São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 1997
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Retrato fiel

JANIO DE FREITAS

O regime político híbrido, com alguns traços de democracia e outros tantos de retorno ao regime de subserviência do Congresso e de poder dos atos institucionais, agora reproduzido pelas medidas provisórias, já é realidade tão concreta, que pode ser até fotografado, assim como certas fotos de generais dispensaram as palavras para descrever o regime no Brasil.
A imagem do atual regime foi registrada pelo fotógrafo Gilberto Alves. E, para alívio de quem ainda crê na hoje desacreditada existência de uma linguagem fotojornalística, mereceu a exceção de ocupar uma área que, nas primeiras páginas atuais, é quase propriedade exclusiva de fotos posadas (uma das inúmeras formas do antijornalismo).
Lá estava, no "Jornal do Brasil": na reabertura do Congresso, Sérgio Motta considera dispensável um pequeno percurso e prefere passar por cima de uma das carreiras de bancadas, ou mesas dos deputados, que compõem o plenário da Câmara. Planta sobre a bancada a protuberância algo paquidérmica de sua retaguarda, como se sentasse, e vai com os pés sobre a mesa, para descer no outro lado da fileira.
Estava retratada, no uso feito da mesa parlamentar pelo "alter ego" de Fernando Henrique Cardoso, a posição do Congresso no regime político híbrido e, portanto, na relação com o Poder Executivo.
Em caso de dúvida sobre a significação simbólica da foto, é só indagar se ocorreria o oposto, um deputado encurtar o seu caminho fazendo o mesmo, à vista de todos, na mesa de Fernando Henrique ou mesmo de Sérgio Motta.
Grande de verdade
1964. O Palácio do Planalto esvazia-se depressa. Os funcionários civis iniciaram a retirada, mas os militares logo estão em número muito menor que o habitual. Poucas pessoas, civis todas, agitam-se de um gabinete a outro, grudam-se nos telefones em busca de informações e na tarefa mais difícil de convocar os aliados políticos e identificar centros de resistência ao golpe.
Não há notícias de ação, por mínima que seja, do "dispositivo militar" do general Assis Brasil, no qual João Goulart e os reformistas depositavam sua convicção de que o golpe conservador não seria tentado e, se o fosse, teria um fim ridículo.
Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, dividindo com Waldyr Pires, consultor-geral da República, as vãs tentativas de articulação da defesa reformista, sai pelo palácio à cata do general. Vai exigir-lhe a ação do "dispositivo". Encontra-o armado de metralhadora em uma das mãos e de um copo na outra. O general está bêbedo, inútil, apenas capaz de balbuciar que "não há mais nada a fazer".
Darcy dá-lhe uma bofetada. Toma-lhe a metralhadora. Vai ainda tentar, com Waldyr Pires, montar a resistência do palácio.
No dia seguinte, aos dois não resta senão voar de Brasília, no aviãozinho sorrateiro arranjado pelo deputado Rubens Paiva, para o que esperavam ser a resistência a levantar-se no Sul, mas vetada por João Goulart.
Darcy Ribeiro não foi só a inteligência de brilho excepcional e de esperançosa determinação criadora. No mesmo nível, foi um homem de caráter e de coragem, em mais uma de suas combinações admiravelmente excepcionais.

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