São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 1997
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As flores e a "maldição de Bresser"

ELIO GASPARI

Depois de ter produzido o maior déficit comercial da história, o Governo FFHH resolveu pisar no freio. Continua coabitado por facções que desejam proteger um pedaço da indústria nacional e por uma concepção cosmopolita, para a qual o que já se fez de abertura comercial é até pouco. Pisar no freio e preservar essa coabitação pode parecer a busca de objetivos contraditórios, mas a manipulação de antagonismos está na essência do modo de fazer política do presidente, e também na sua graciosa personalidade.
Pisando no freio, FFHH pisará no calo dos legítimos interesses de empresas internacionais e dos governos que as amparam. Pisará sobretudo no calo dos Estados Unidos. Até agora, isso ficou barato, com o chanceler Luiz Felipe Lampreia discutindo com um funcionário de terceiro escalão do governo americano. É muito provável que a defesa das contas internacionais brasileiras venha a custar um pouco mais.
Nesse sentido, nunca é demais lembrar a "maldição de Bresser Pereira". É coisa antiga. Durante o governo Sarney, Bresser era ministro da Fazenda, vivia-se a crise da dívida externa, e ele foi a Washington propor uma remarcação do papelório. Queria um abatimento para começar tudo de novo, mas o secretário do Tesouro, James Baker, classificou sua proposta de impertinente. Até aí, tudo bem, com um secretário do Tesouro americano defendendo os interesses da banca americana. A coisa complica quando se vê que Bresser foi tratado, no Brasil, como um ingênuo próximo da demência. (Entre as pessoas que lhe deram esse tratamento estava o signatário.)
Passaram-se alguns anos, veio um novo secretário do Tesouro (Nicholas Brady), e o presidente George Bush desceu goela abaixo da banca uma remarcação refinada pelos japoneses e semelhante à que Bresser propusera. Como ficou o ex-secretário Baker nisso tudo? Foi acusado pelos americanos de ter defendido impropriamente os interesses da banca, sendo acionista da casa Chemical. Viu-se repreendido pelo consultor jurídico da Presidência. Resumo da ópera, Bresser estava certo, Baker estava errado, e, enquanto os americanos cuidaram do caso a sério, os brasileiros trataram do assunto defendendo interesses opostos aos do país.
A "maldição de Bresser" está de volta. Reaparece toda vez que uma posição do governo brasileiro diante de adversários externos é vista, automaticamente, como produto da ingenuidade e do primarismo.
É possível que a política de telecomunicações seja produto de uma reflexão primária, mas ainda não há indicações sólidas de que a posição do governo nas negociações esteja errada. É certo que o ímpeto privatista do ministro Sérgio Motta é um trator para reeleger FFHH e um carrinho de mão na hora de forçar a concorrência, mas isso pouco tem a ver com a negociação internacional.
A "maldição de Bresser" ronda sobretudo a espécie de utopistas do livre mercado, aos quais o presidente do BNDES, Luís Carlos Mendonça de Barros, já aplicou um adjetivo chulo. São pessoas que vendem a idéia de um novo Brasil, integrado a uma economia global, onde o mercado dita preços, negócios e políticas. Se existe esse novo Brasil, não se sabe.
O que se sabe é que não existe esse mundo do livre comércio. Quando os Estados Unidos conseguem negociar com 70 países um acordo internacional de telecomunicações, a czarina de seu comércio internacional, Charlene Barshefsky, diz que se exportaram "os valores americanos, transformando a paixão americana pela liberalização num instrumento de política externa".
Poesia pura. Na mesma edição em que o "The New York Times" noticiava esse florilégio, vinha a notícia de que o governo americano poderá suspender a imunidade alfandegária que dá às flores colombianas. Trata-se de um negócio de US$ 370 milhões ao ano. As flores são o terceiro item da pauta de exportações da Colômbia, que fechou o ano de 1995 comprando aos Estados Unidos US$ 2,1 bilhões a mais do que lhe conseguiu vender. Grande freguês, portanto.
A suspensão da imunidade tributária das flores é defendida com o argumento de que os colombianos continuam contrabandeando cocaína para os Estados Unidos. Mais: a área plantada de folhas de coca cresceu nos últimos anos. O fato de os floricultores não plantarem coca é irrelevante. O fato de formarem uma oposição poderosa aos cartéis do narcotráfico é desprezível.
Uma das alavancas da implicância do governo Clinton com as flores colombianas é o efeito que esse livre comércio, solitário toque romântico da globalização, produz sobre a floricultura da Califórnia. Ou se criam barreiras para as importações de cravos, rosas e crisântemos colombianos, ou os plantadores americanos quebram.
Ainda não é certo que a imunidade das flores colombianas vá ser suspensa, mas, se isso acontecer, duas coisas ficarão provadas. Ao contrário do que diz a senhora Barshefsky, os Estados Unidos fazem política externa tanto derrubando barreiras quanto erguendo-as. Fazem isso porque o governo americano existe para defender os interesses sociais e econômicos dos americanos. Tanto apertando exportadores de cocaína, quanto defendendo rosicultores da Califórnia.
Os funcionários do governo americano ganham bem, são competentes e gostam do seu país. Defendem sua balança comercial como quem defende a folha de pagamentos. Não precisam da ajuda dos funcionários (ou dos ministros) do governo brasileiro, que ganham mal, nem sempre são competentes, mas devem pelos menos fingir preocupação com a má qualidade das contas externas do país em que vivem.

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