São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 1997
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Biografia retoma figura de Duchamp

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Ao contrário da norma, o artista plástico francês Marcel Duchamp se recusava a levar malas quando viajava. Preferia usar uma camisa sobre a outra, o mesmo terno e a escova de dentes, cuidadosamente guardada no bolso. Tudo mais era dispensável.
Essa é uma das várias anedotas sobre o artista que matou a idéia de museu e disseminou o que se entende hoje por arte conceitual que se tornam fatos comprovados ao longo das 400 páginas do livro "Duchamp: A Biography", escrito pelo crítico norte-americano Calvin Tomkins.
"A primeira vez que encontrei Marcel Duchamp foi em 1959, quando o entrevistei para o semanário 'Newsweek' na ocasião em que estava sendo publicada a primeira grande monografia sobre o seu trabalho."
Um ano depois do encontro, como disse à Folha por telefone, de Nova York, Tomkins entraria para a revista "The New Yorker" para, 36 anos depois, dar conta de sua obsessão em um "trabalho de uma vida".
Mídia
Lançado há dois meses no mercado de seu país, "Duchamp: A Biography" enfrentou um filme, as amantes e os aclamados escritos de John Richardson (crítico e biógrafo) sobre Pablo Picasso.
Mais uma vez, não mais para a história, mas apenas para a mídia, a definição de quem foi o artista que moldou a arte que vemos hoje foi retomada.
"Acho que Picasso é decisivo para a primeira metade do século 20. Na segunda metade o papel é ocupado por Marcel Duchamp", diz Tomkins.
"Os jovens artistas são influenciados pela presença de Duchamp, o que é evidente na arte conceitual. Picasso não é mais a influência predominante."
E, para Tomkins, alguém que detesta a performance, as carcaças de animais e o sangue humano nas exposições tem o dever moral de odiar a presença e as criações de Marcel Duchamp, o homem que reinventou a vanguarda e, de certa maneira, esgotou suas possibilidades.
"Na verdade, Marcel Duchamp ajudou a institucionalizar a vanguarda porque estava questionando as definições antes tidas para a arte."
"Ele não fez apenas isso possível, mas realmente necessário para um artista decidir por si mesmo o que era arte. E o que fez foi transformar qualquer coisa do mundo em uma obra. Algo que é na verdade muito mais mental do que propriamente físico. O objeto se torna bem menos importante do que a idéia contida nele."
Moral burguesa
Nascido em 1887, em uma moral burguesa que agonizava em um século que morria, Duchamp, ainda nos anos 10, passou a cultivar a crença de que habitamos não exatamente uma terra.
Vivemos, na verdade, em um cenário em que tudo é motivado pelo absurdo. Assim é o homem. E assim é também sua arte.
Com o movimento dadaísta, partiu para a ação. Criou o "ready-made" (o objeto cotidiano, como a clássica roda de bicicleta, convertido em obra) em 1912, cinco anos depois de Pablo Picasso ter anunciado o cubismo com o quadro "Les Demoiselles d'Avingnon".
Desistiu, durante alguns anos, da vida mundana dos artistas em nome do xadrez. Participou de seleção francesa de enxadristas e descobriu, literalmente, a América, onde se tornou um mestre amado pelos jovens artistas.
Lá, teve um caso com a mulher de um diplomata brasileiro, Maria Martins, e realizou "Étant Donnés", a ambiciosa instalação em que trabalhou até 1966, dois anos antes de sua morte.
Análise
Tomkins alinha os acontecimentos misturando o dado factual com a análise, e termina por recuperar a figura de Teeny Duchamp, a mulher que o artista encontrou aos 63 anos (ela, 45) e transformou em sua companheira. Determinante em seus últimos anos.
"Teeny era muito interessada no trabalho dele. Em 'Étant Donnés' sua presença é muito forte. Ele a usou como modelo para os braços da figura."
O excêntrico Duchamp, o homem com ojeriza à bagagem, pode ter tido, em sua vida, menos mulheres que Picasso. Mas, assim como ele, parece ter aproveitado cada instante, cor e imagem delas.

Livro: Duchamp: A Biography
Autor: Calvin Tomkins
Lançamento: Henry Holt (400 págs.)
Quanto: US$ 35
Onde encomendar: Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033)

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