São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

`Muita coisa explode em "Marte Ataca"

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Muita coisa explode em "Marte Ataca"
Havia uma bela explosão no final de "Zabriskie Point", filme de Michelangelo Antonioni feito na década de 70. Vivia-se uma época de contestação; o filme ficou aliás proibido bastante tempo no Brasil. Centenas de jovens faziam sexo nas areias de um deserto americano; a câmera filmava de longe.
Depois da cena de "amor livre", como se dizia então, a tela era ocupada por uma casa chiquíssima, ou hotel de luxo, não me lembro bem, com vários andares e terraços dando sobre o deserto.
E então, BUM! A casa ia pelos ares. Um aparelho de TV saía voando pela janela; sofás, geladeiras, carros, o que você quisesse -significando obviamente a sociedade de consumo- explodia numa grande liquidação final do "sistema".
E com isso acabava o filme também; havia "passado a sua mensagem", parecia congratular-se pela própria ousadia, pelo empenho em ser literal.
Muita coisa explode em "Marte Ataca", comédia de Tim Burton que invade os shopping centers da cidade. Sua contestação é bem mais irônica, muito mais engraçada; não estamos nos anos 70.
Os marcianos são horríveis. De um lado, correspondem ao velho clichê dos homenzinhos verdes. Mas têm também cara de caveira, gestos computadorizados e um prazer infantil na destruição. A frieza evoluída do clássico invasor extraterrestre se transforma em vandalismo adolescente; é como se "O Máskara" decidisse ser malvado e se multiplicasse aos milhares, ou como se os gremlins, adquirindo forma antropóide, constituíssem uma civilização superior.
Um disco voador joga boliche com as estátuas da ilha da Páscoa, três marcianinhos tiram fotos turísticas do Taj Mahal antes de vê-lo pulverizado, a Terra inteira vira uma espécie de playground, e cada um de seus habitantes se torna um alvo de videogame.
Mas, assim como em "Zabriskie Point", não lamentamos muito o fim de mundo proposto por Tim Burton. Glenn Close, que faz a mulher do presidente americano, morre espetacularmente. Mas era tão idiota e típica em seu papel de dona-de-casa, tão plastificada em seus pancakes e poses de primeira-dama, que vemos com prazer a ação dos alienígenas.
Ficamos detestando os marcianos, mas a civilização americana parece merecer o ataque. O filme é arrasador. Divididos entre a velha truculência militarista e o otimismo infantil do fim do milênio, parte da população dos Estados Unidos e seus líderes fazem um papel ridículo.
Mas o que mais chama a atenção no filme é a indiferença da grande maioria. Quase todo mundo continua a viver sua vida. Um empresário em Las Vegas pensa apenas em construir um hotel gigantesco -e se os marcianos vierem mesmo, raciocina, terão de se hospedar em algum lugar.
A idéia do filme pode parecer ambígua a partir desse ponto. De um lado, o "american way of life" merece ser pulverizado. De outro, parte da estupidez americana está precisamente no fato de que não se defende dos seus agressores.
Há a teoria de que a volta dos filmes de marcianos corresponde à situação pós-guerra fria de uma paranóia sem objeto, sem inimigos visíveis. Não sei se os inimigos não existem; o fundamentalismo muçulmano é um bom candidato. O problema não é que faltem inimigos, mas sim o de que a moral -ou a ideologia- para enfrentá-los não é predominante.
Ainda hoje os Estados Unidos acreditam fazer guerras e invasões "pelo bem" dos povos envolvidos; depois do Vietnã essa crença vacilou, enfrentando grande oposição eterna. O paradoxo é que hoje, em alguns casos, uma intervenção bem-feita não parece à opinião pública mundial a pior das soluções.
A possível ambiguidade do filme encontraria, assim, uma chave de interpretação. No auge da rapina, do morticínio, do bombardeio, os marcianos insistem em dizer aos terráqueos, através de uma máquina de tradução: "Não fujam, não tenham medo, somos amigos."
Foi o que os americanos sempre disseram em suas investidas militares. E os extraterrestres, divertindo-se como teenagers, não diferem de uma gangue de Los Angeles.
Os inimigos dos americanos, segundo o filme, parecem ser acima de tudo os próprios americanos: seja quando se dedicam a ser eles mesmos, típicos, crédulos, cheios de bons sentimentos, seja quando estão mascarados de marcianos e encontram meio de liberar sua vontade de destruição.
Uma cultura consumista e ávida, de resto, é sempre destruidora e bárbara; e desde o nazismo se sabe que uma concepção do mundo baseada em sentimentalismo kitsch nunca está distante do delírio sádico.
O filme critica sadicamente a linguagem melosa de Hollywood, e ao mesmo tempo uma melodia xaroposa tem grande papel (não vou contar a história) contra o sadismo dos marcianos. As identidades se embaralham, entre crítica e autocrítica, nessa brilhante comédia.
O caso Lamia
Como muita gente, fiquei chocado com o oba-oba em torno do repatriamento de Lamia Maruf. Faltou pouco para que essa moça, condenada por cumplicidade num sequestro seguido de tortura e assassinato, fosse considerada uma heroína no Brasil. Foi recebida pelo cônsul brasileiro na Inglaterra. A TV mostrou sua família em lágrimas e a Folha fez um desenhinho do cardápio de seu almoço de boas-vindas.
Israel fez massacres espantosos contra o povo palestino. Mas matar um soldado israelense indefeso não é mais que um ato covarde. A pena a que Lamia foi condenada pode sem dúvida ser considerada severa demais. Mas se a chamam de "prisioneira de guerra", e se tudo aquilo é ou era uma guerra mesmo, ela foi cúmplice de um crime de guerra também.
Por que tanta euforia? Desconfio que por duas razões. A primeira é uma espécie de ufanismo tipicamente brasileiro. Diziam que o primeiro homem a andar na lua era brasileiro, tinha nascido em Santa Catarina.
Descobrimos agora que tínhamos uma palestina brasileira! Um pouco como aqueles anúncios de agência de turismo, que apresentam como triunfo, e com um vago senso de emoção narrativa, a presença de "um ônibus brasileiro no Canadá". Fazendo misérias, talvez.
A segunda razão é que, embora critiquemos tanto a "cultura da impunidade", gostamos muito mais quando alguém é solto do que quando alguém é preso. Quando o filho de Odacir Klein matou um rapaz num acidente de trânsito, o então ministro recebeu mais solidariedade do que a família da vítima.
Reação até certo ponto natural, pois sabemos o que é uma prisão brasileira. É justo que, por exemplo, um ladrão de toca-fitas fique na cadeia por uns tempos. Mas que lá seja estuprado e contaminado com o HIV não só é uma barbaridade como compromete a própria idéia de justiça e punição.
Humanizar os presídios, conforme pregam a CNBB e muitas pessoas, não é necessariamente questão de ser "bonzinho" com criminosos. É também combater um dos fatores que tornam natural, muitas vezes, nossa tolerância com a impunidade.

Texto Anterior: Estréia site do MorumbiFashion
Próximo Texto: Patrulha do Destino tem edições especiais
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.