São Paulo, sexta-feira, 21 de fevereiro de 1997
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Entre a cruz e o AR-15

LUIZ CAVERSAN

Rio de Janeiro - A pequena construção coberta de azulejos lembrava uma capelinha. Daquelas que a gente vê em beira de estrada ou cemitério humilde. Portinhola de vidro, o "santuário" tinha tudo do rito católico: cruz, imagens, flores.
Mas não era tão católico assim: ao lado de imagens de santos verdadeiros -e outros nem tanto, como a da Escrava Anastácia, a negra que falava demais e ganhou uma máscara de metal-, havia fotos de vários traficantes mortos pela polícia.
O "santuário" foi descoberto no alto do morro dos Macacos, em Vila Isabel, Rio. Abrigava a foto de Ed Pistola -morto dias antes e cujo enterro virou manifestação de moradores e quebra-quebra-, mais as imagens de Dododi, Maíco e Gang.
Todos, soube-se, pretensos "beneméritos" moradores do morro. Traficantes? Sim, mas também benfeitores para a sofrida população local.
Esse tipo de caridade ocorre na maioria dos morros do Rio, é histórica e já foi maior. Alimentos, creches, lavanderias coletivas, luz, água, campos de futebol e segurança para os moradores são os "bens" que os traficantes costumam oferecer para ter em troca proteção, conivência, aceitação social.
Antigamente, costumava ser uma troca natural, tranquila até, uma vez que a maioria dos traficantes (lembra-se de nomes Escadinha, Dênis?) era da própria favela, ali nascida e conhecida de todos. O tráfico acabava sendo encarado como apenas um "ganha-pão".
Hoje, a barra é mais pesada para os próprios moradores, uma vez que, com as guerras de quadrilhas, o "dono do morro" vem de fora, não tem raízes por ali e se impõe pelo terror.
Mas ainda persiste o "bom traficante", aquele que ocupa o lugar que deveria ser do poder público como provedor de bem-estar.
Desempenham tão bem esse papel que, quando mortos, ganham até santuário. Por culpa de um Estado ausente e ineficiente.

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