São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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O pacote da saúde pode acabar num desmanche social; Senado x BC; Amigos?; Boa notícia; O frentismo, doença senil do imobilismo; Comandante Figueiredo, um homem de bem; Dever de casa; Má estréia; Sem chance

ELIO GASPARI

O pacote da saúde pode acabar num desmanche social
Escanteado o professor Adib Jatene, cozinha-se entre o Ministério da Saúde e algumas salas de sábios do Palácio do Planalto a quebra do princípio da universalidade do atendimento médico no sistema público de saúde. Trata-se do dispositivo constitucional que assegura a todos os cidadãos brasileiros o acesso aos serviços médicos da rede pública.
O governo não decidiu tomar esse rumo, mas a idéia está na mesa. Planeja-se um novo sistema de saúde baseado na redefinição do papel do Estado e dos serviços de seguro e medicina privados.
Como isso será feito, não se sabe, até mesmo porque faltam ao governo os números básicos do problema. Quantas são as pessoas cobertas pelos serviços privados? Seriam 40 milhões, mas também podem ser 35 milhões. Quanto o Brasil gasta com saúde? Os gastos federais podem chegar a R$ 20 bilhões. Os Estados e municípios podem estar gastando uns R$ 5 bilhões, mas o número certo não existe. Se o setor privado movimenta R$ 12 bilhões, e se o pagamento direto dos pacientes soma uns R$ 3 bilhões (o que é apenas um palpite), então neste ano pode-se estar gastando R$ 40 bilhões. Nesse caso a conta pode ficar um pouco acima de 6% do PIB. Como o Japão e a Espanha gastam 7%, até que não é pouco.
Não se sabe quantos cidadãos pagam ao setor privado e usam a rede pública quando o tratamento é caro. Esse é um número vital para se definir o alcance efetivo da rede privada de seguros e de planos de assistência.
Tateando na penumbra, sabe-se que há até bem pouco tempo se estudava no Ministério do Planejamento o modelo canadense, um dos mais criativos e bem sucedidos do mundo. Produto de 80 anos de luta e outros 30 de aperfeiçoamento, ele beneficia toda a população e é administrado pelos governos federal, estadual e municipal. Copiá-lo seria impossível, mas começar a discuti-lo seria saudável.
Numa política de pacotes, pode-se temer que o governo decida criar um sistema pelo qual assegure o acesso gratuito para quem ganha até 3 salários mínimos e, a partir daí, crie um sistema de pagamento, acoplando à rede pública os seguros e planos privados.
Na teoria esse plano pode ser bonito. Na prática, só existe nos Estados Unidos, único país desenvolvido que não assegura aos seus cidadãos a universalidade do acesso aos serviços públicos. Além disso, é um fracasso. Primeiro, porque consome 14% dos recursos do PIB. Segundo, porque deixa sem cobertura algo como 30 milhões de pessoas. (Cuidado: não são 30 milhões de miseráveis, aquela gente que caiu nos "desvãos da história". São milhões de pessoas que não têm seguro ou plano privado. Metade delas da classe média.)
O tucanato adora menosprezar coisas que só existem no Brasil. É o caso de se perguntar porque se deve copiar uma coisa que só existe nos Estados Unidos e não funciona.
É possível que se queira macaquear os sistemas japonês, francês ou alemão. Nesse caso, a porca torce o rabo porque eles garantem a universalidade, amparando-se em companhias ou convênios privados sem fins lucrativos. Quem acha que os similares nacionais, regiamente isentos de impostos, realmente não dão gordos rendimentos aos seus controladores, que se apresente. (Alô, alô, doutor Everardo Maciel, da Receita Federal, telefone para o ministro Carlos Albuquerque, da Saúde. Ele está precisando de ajuda.)
Uma reforma do sistema de financiamento e de atendimento da rede pública de saúde pode vir a ser um dos grandes momentos do reinado de FFHH. Pode também resultar num esquema típico do desmanche social: estatizam-se os velhos e os pobres, privatiza-se a poupança da classe média, deixando para a viúva os procedimentos médicos mais caros. Para a saúde das empresas, nada melhor.

Senado x BC
A ekipekonômica adora criticar o Congresso.
Resta saber como o Banco Central explica o fato de a CPI do senador Roberto Requião ter conseguido, em apenas dois meses, identificar e desmascarar um laranja do porte de Ibrahim Borges Filho, o IBF dos papelórios do governador Paulo Afonso Vieira. Todas as informações usadas pela CPI estavam nos arquivos do BC, dormindo em berços esplêndidos.
Não há notícia de que o BC do mandarinato de Gustavo Loyola tenha conseguido descascar uma só tangerina.

Amigos?
Amigos do senador José Sarney garantem que foi dele o voto em branco na eleição para a escolha do novo presidente do Senado.

Boa notícia
Abre na semana que vem, em Nova York, a livraria Labyrinth Books. Promete 50 mil títulos, nenhuma prateleira de culinária, muito menos para guia de viagens. Ligada à Universidade de Columbia, em cuja vizinhança se localiza, terá como marca as edições do mercado universitário. Por incrível que pareça, faltava a Nova York uma livraria desse gênero, deixando-a atrás de Washington, onde brilha a famosa Sidney Kramer (a preferida do professor Mário Henrique Simonsen).
Para clientes como o deputado Delfim Netto, que vai comprar livros num mega-sebo de camionete, a Labyrinth será um presente divino.
Ficará na rua 112 West, entre a Broadway e a avenida Amsterdã.
Para quem quer comprar bons livros e acha que esse endereço fica longe, há a alternativa da Amazon Books, na Internet. Seu endereço é:
http://www.amazon.com
Tem de tudo. O preço do frete é um pouco salgado, mas os livros chegam, depois de uma espera que dura em média três semanas.

O frentismo, doença senil do imobilismo
De uma coisa FFHH não pode se queixar: tem a pior oposição que a República conseguiu produzir.
Sua última façanha foi a reunião realizada em Vitória, juntando Luiz Inácio Lula da Silva, Tarso Genro, Ciro Gomes, Jaime Lerner, Fernando Gabeira, o PPS e o PC do B. Tudo isso sob a presidência hospedeira do governador Vitor Buaiz dizendo que "precisamos discutir um projeto alternativo para oferecer ao país" e que "temos que nos congregar, porque o trator está ligado".
É a velha idéia de formação de uma frente política juntando, num só palanque, tudo o que há de oposição a um governo. Mecanismo eficaz na luta contra as ditaduras capazes de unir a direita católica e a esquerda comunista, o frentismo é pouco mais que um embuste nos regimes democráticos.
O que é que Lula pode fazer numa frente com Ciro Gomes, o animador econômico da fase final da campanha de FFHH? O que é que o PT tem em comum com a esquerda que votou pela reeleição de FFHH? Podem ter afinidades, relações pessoais e admirações intelectuais, mas projeto, nem pensar. Se tiverem, será um Frankenstein.
Poucas coisas podem ser tão ricas para uma personalidade ou para um partido político quanto a solidão da derrota. Quando os alemães entraram em Paris, e o general Charles De Gaulle foi para Londres, a BBC não se deu sequer ao trabalho de gravar o seu primeiro discurso aos franceses. A história do século 20 começou a virar quando uma senhora chamada Margaret Thatcher passou a almoçar regularmente com um amigo (Keith Joseph) e os dois resolveram lixar as tintas moderadas do partido conservador, exorcizando a política de consenso da direita inglesa. Radicalizaram o conservadorismo e mudaram o mundo por meio do dissenso. Foi a derrota que lhes mostrou o caminho da hegemonia.
O que falta à oposição de FFHH é a capacidade de dissentir. O Vicentinho da CUT apoiou a reforma da Previdência. A bancada de esquerda no Congresso mal se interessa pela resistência de uns poucos petistas ao rolo compressor dos interesses das escolas e dos hospitais privados. Sua contribuição nos debates sobre saúde e educação é pífia (a da bancada governista também, mas há método na sua mediocridade.)
O projeto alternativo que o governador Buaiz procura deve ser buscado na sua própria cabeça, ou na de seu partido, com o qual mal se entende. Aliás, quem faz projeto é arquiteto. Político faz programa.
Não há trator algum ligado. O que há na política brasileira é o predomínio de uma espetacular coligação conservadora. Ela faz o que quer, entre outros motivos, porque a oposição não consegue dizer à opinião pública que tipo de políticas defende. Quando consegue, como sucedeu com o PT em Porto Alegre e o PDT no Rio (antes de se esborrachar), votos e atenção não lhe faltam.
Uma coisa é certa. Depois da conversão de FFHH, quem subir numa tribuna para defender os "interesses da cidadania" e o debate com "todos os seguimentos da sociedade" estará perdendo tempo. Até porque se o negócio for levar no gogó, o mandato do professor Cardoso será vitalício.

Comandante Figueiredo, um homem de bem
Um oficial da Aeronáutica fez corpo mole para evitar que o corpo de Darcy Ribeiro voltasse para o Rio num jato da FAB. O problema só foi contornado porque FFHH entrou no circuito.
Numa hora dessas não vale a pena remexer as razões desse oficial graduado e poderoso. Seu tempo é o da ditadura. Vale muito mais falar de outro. Seu nome: Alfredo Figueiredo. Em 1969, como capitão-de-mar-e-guerra, chefiava o Batalhão de Comando do Corpo de Fuzileiros Navais, na Ilha das Cobras. Coube-lhe o papel de carcereiro de Darcy.
O comandante Figueiredo rebarbou queixas contra a liberdade que o preso tinha no quartel e denúncias contra seu comportamento. (Darcy se descontrolou ao saber, pela televisão do cassino dos oficiais, que seu irmão fora cassado. Soltou um palavrão e retirou-se da sala.) Figueiredo tratava seu preso de acordo com as normas do cavalheirismo da Marinha de Guerra.
Foi na Ilha das Cobras que Darcy começou a escrever seu romance Maíra. Da janela do camarote de oficial superior que Figueiredo lhe deu, viu um velho portão do século 18 arruinando-se no abandono. Telefonou ao Patrimônio Histórico e conseguiu a promessa de sua restauração. Caso inédito de preso que zela pela integridade do cárcere.
Em setembro de 1969, quando os sapos bebiam água com canudinho por conta da piranhagem desencadeada pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, Darcy foi a julgamento. O auditor que presidia o tribunal (Osvaldo de Lima Rodrigues) advertiu Figueiredo para o risco de burla de uma eventual absolvição. Isso era feito assim: o preso, absolvido, retornava ao cárcere, à espera de um alvará de soltura. Antes que o alvará chegasse, aparecia uma nova ordem de prisão e trancafiavam-no em outro quartel.
Darcy foi absolvido de madrugada e chegou ao Batalhão de Comando nas primeiras horas da manhã. Lima Rodrigues expediu o alvará, e Figueiredo amanheceu no gabinete. Pegou o papel, rubricou-o e mandou soltar o professor. Quando veio a ordem para que o preso fosse transferido, explicou: "Não está mais aqui".
Lima Rodrigues passou a ser perseguido por alguns hierarcas da Marinha. Figueiredo nunca chegou a almirante por conta do que teria sido sua má conduta como carcereiro. Nunca se vangloriou do que fez, nem se queixou do que lhe fizeram. Simplesmente se comportou como um homem de bem a serviço de uma força armada.
Em tempo: Darcy esteve preso por alguns meses na Vila Militar. Lá havia um tenente que limitava suas caminhadas durante o banho de sol. Marcava com giz duas linhas que o professor não podia ultrapassar e se divertia vendo como era obedecido. Darcy falava com pena desse tenente. Não sabia ao certo se ele se chamava Aloan ou Aolan. Explicava-se: "O nome dele não tem nenhuma importância".

Dever de casa
Os ministros Pedro Malan, da Fazenda, e Antonio Kandir, do Planejamento, precisam se reunir para ver em qual de suas pastas está o dever de casa de ir buscar no Congresso a fonte de Receita do Fundo de Estabilização Social, que secará em junho.
Esse fundo leva R$ 4 bilhões para o erário. Ele caduca em quatro meses. No fim do ano caduca a CPMF, que rende uns R$ 6 bilhões.
Até agora a Fazenda e o Planejamento não fizeram o dever de casa de enviar ao Congresso o projeto de emenda constitucional que permita revitalizar o Fundo de Estabilização. Se o fizessem amanhã, ainda assim seria difícil que o rito legislativo fosse cumprido antes do fim de junho.
Quando a fonte de receita secar, não faltarão gênios para denunciar a lentidão do Congresso. Estarão mentindo.
Malan e Kandir não fizeram o dever porque são ruins de serviço ou porque não querem fazer marola enquanto tramita a emenda da reeleição. Ou pelos dois motivos.

Má estréia
O presidente da Câmara, Michel Temer, tem todo o direito de aumentar a verba pessoal dos deputados de R$ 10 mil para R$ 20 mil. Fez isso dizendo que ele precisam remunerar adequadamente seus assessores.
Tudo bem. Ao final de cada mês, bem que Temer poderia publicar a lista das pessoas que receberam salários por conta dessas verbas. Lista com nome, profissão e CPF.
Assim seria possível saber quem são os deputados que usam a verba de gabinete para pagar salários de empregados domésticos. Ou ainda, os que fingem que pagam R$ 5 mil ao amigo e acabam embolsando a maior parte do dinheiro.

Sem chance
Não passa pela cabeça de FFHH criar ministério, secretaria ou agência oficial para cuidar das exportações.

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