São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Futebol integra indígenas em São Paulo

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os índios do Estado de São Paulo entraram em campo, no Estádio do Ibirapuera (rua Manoel da Nóbrega, 1.361), para uma conhecida prática esportiva, o futebol.
Na última quarta-feira, depois de um desfile que contou com representantes de cinco etnias (guarani mbya e nhandeva, krenak, kaingang, terena e pankararu), o apito soou para o jogo de abertura do Intertribol (1º Campeonato Indígena de Futebol).
A abertura dos jogos procurou conciliar regras do rígido protocolo oficial com costumes indígenas. Houve hasteamento de bandeiras e execução do hino nacional, com muitos índios cantando com a mão no peito. Mas também houve tambores, cocares, colares e danças típicas.
A rivalidade era visível -cada etnia fazia sua "pajelança", com gritos de guerra. No entanto, os índios deram-se as mãos, formando uma grande corrente em torno do campo, e dançaram juntos o "xundaro", luta marcial dos guarani mbya.
No primeiro jogo, entre a aldeia guarani de Rio Branco e o misto krenak-kaingang de Vaniri, deu 16 a 0 para o misto. "Espero que não tenham zarabatanas. Mas acho que quem corre mais perigo são os auxiliares", brinca antes do jogo Edson Ricco Filho, árbitro da Federação Paulista de Futebol.
Segundo Ricco, houve uma preleção entre juízes e jogadores. Decidiu-se que não haveria rigor em regras como cobranças de laterais. Diante da insistência de o goleiro da aldeia Rio Branco fazer o sobrepasso (caminhar com a bola nas mãos), o árbitro gritava, durante o jogo, sem interrompê-lo: "só podem quatro passos".
Integração
Há décadas, os "primeiros brasileiros", palavras do índio guarani Verá Popygwa, imitam os "não-índios", termo agregado ao dicionário do politicamente correto, praticando o esporte paixão nacional.
Mais que um simples jogo, o futebol é a ponte que algumas aldeias utilizam para se integrar com os "não-índios" que cercam e ameaçam suas terras -muitas tribos têm times que participam de campeonatos de várzea.
"O futebol de várzea é uma forma de fazer amigos e ganhar respeito. Ganhar ou perder tanto faz. Recomendamos não fazer baixaria", diz Manuel Lima, cacique da aldeia guarani Morro da Saudade, distante 50 quilômetros do centro de São Paulo.
"Nosso mundo é totalmente diferente dos não-índios, mas a gente espera ter o apoio deles", completa Lima; sua aldeia já ganhou mais de 15 troféus em campeonatos da região de Parelheiros, zona sul de São Paulo.
"Antes dos jogos, o técnico reúne o pajé e nós. Diz pra gente não reclamar, nem xingar, nem usar violência. Se eu brigar com um branco, o cacique me tira do time", afirma Popygwa, volante do Morro da Saudade.
Até 21 de fevereiro, 17 equipes disputam o Intertribol. O cacique da aldeia Morro da Saudade, diferente de alguns líderes "não-índios", não interferiu na escalação do time: "Não é por ser liderança que vou dizer o que fazer".
São Paulo
"Mais fácil organizar um torneio de futebol que articular um encontro que discuta a questão fundiária", atenta Maria Inês Ladeira, do CTI (Centro de Trabalho Indigenista).
O Intertribol não está restrito ao esporte que consagrou Garrincha, de ascendência indígena, e Zé Afonso, que joga atualmente no Grêmio de Porto Alegre (RS).
O campeonato é a fórmula encontrada para reunir lideranças indígenas e articular ações de organismos responsáveis como FUNAI (Fundação Nacional do Índio), Comunidade Solidária e Qualidade de Vida, secretarias do Estado, universidades e organizações não governamentais.
Uma dos temas do encontro é a troca de experiências em agricultura, visando a independência financeira das aldeias de São Paulo - o artesanato, uma das atividades dos guarani mbya, não cobre as despesas.
"Precisamos de uma agricultura de subsistência. Não temos ouro nem madeira para vender", afirma o cacique Manuel Lima.
Ed Burnstick, índio canadense especialmente convidado para o encontro, lembra que no Canadá, como no Brasil, os índios foram colocados em reservas onde a terra não é boa para a agricultura.
"Lá, são 600 reservas. Em algumas, têm cassinos. Em outras, eles pescam. O problema é que nós, índios, não temos noção de economia. Precisamos aprender isso dos brancos", diz Burnstick.
"Depois de 88, o Estado deixou de representar o papel de interventor para integrar os índios. Eles passaram a ter direito à viver em suas comunidades e à uma escola diferenciada. É quando o índio deixa de ser visto como passado e passa a se integrar", diz Maurício Fonseca, secretário executivo do Programa Qualidade de Vida.
Mídia
Para Fonseca, os índios do Estado não têm acesso à mídia. O Intertribol é uma tentativa de trazê-los à tona. "Nada se comenta sobre os índios daqui. Se desconhece a realidade de índios que moram no município de São Paulo", completa.
Segundo dados do CTI, são 15 áreas indígenas no Estado, divididas por entre quatro etnias "aldeadas". Algumas não foram homologadas pela união federal (duas em Cananéia, duas em Mongaguá e uma em São Sebastião, todas guarani), e uma área, M'Boi Mirim, teve o processo de reconhecimento cancelado.
"Esta área é reivindicada pela Cúria de São Paulo. As outras já estão limitadas. Mas envolve boa vontade dos governos federal e estadual. Eles têm que tirar e indenizar os não-índios que ocupam terras indígenas e depois homologar", diz Ladeira.
É quase impossível fazer um levantamento de quantos índios vivem no Estado. "O guarani se move muito e está presente na faixa que vai do Espírito Santo à Argentina, e existem índios que vivem em favelas ou que não têm área reconhecida", diz Ladeira.

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