São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Tamanho não é documento...

ROBERTO CAMPOS

"O socialismo é apenas o trecho acidentado de uma estrada que sai do capitalismo e leva ao capitalismo"
Anedota polonesa

Pedro, o Grande, o modernizador da Rússia no albor do século 18, era um gigante físico com mais de dois metros de altura. Deng Xiaoping, o modernizador chinês, que acaba de falecer, era quase um anão -pouco mais de um metro e meio. Tamanho não é documento...
Pedro, o Grande, que morreu com 52 anos, transformou o grão-ducado de Moscou numa potência imperial, abrindo seu país, até então marginalizado, à tecnologia ocidental. Deng Xiaoping, vivendo 92 anos, proclamou em 1980 a política de portas abertas, a qual, complementando a política das quatro modernizações iniciada em 1978, deslanchou a marcha chinesa para recuperar a posição de superpotência, que perdera há 500 anos...
Separados por quase três séculos, tiveram tarefas semelhantes: a modernização dos respectivos países. E algumas coincidências metodológicas como, por exemplo, a criação de "ínsulas" estratégicas de desenvolvimento. No caso russo, a ínsula tecnológica foi São Petersburgo, janela para o Báltico e foco de irradiação da tecnologia ocidental. No caso chinês, foi a criação das zonas econômicas especiais, nas regiões costeiras, com uma espécie de enxerto capitalista experimental no tecido socialista.
Em reunião recente na Universidade de Stanford, ouvi de Lee Kwan Yew -um "nation builder", que foi primeiro-ministro de Cingapura por um quarto de século- que a diferença fundamental entre Mao Tse-tung e Deng Xiaoping é que este último experimentara um choque cultural ao trabalhar vários anos como jovem operário em fábricas francesas, familiarizando-se com os valores ocidentais. Mao nunca deixou seu país, a não ser para uma visita a Moscou, por ocasião do 70º aniversário de Stalin, quando seus contatos foram ideológicos e não tecnológicos.
O confinamento de certos líderes ao seu horizonte natal -doença que afetou Getúlio Vargas, cuja única excursão foi à Argentina- impede que adquiram padrões de referência e sentido de proporções. Só assim se explicam os dois desvarios de Mao: o "Grande Salto Avante", que matou milhões de fome e criou inviáveis indústrias de fundo de quintal, e a "Revolução Cultural", que desorganizou o ensino, paralisou a economia e deflagrou uma tempestade de fanatismo. Durante os anos de chumbo da "Revolução Cultural", Deng, companheiro de Mao na "Longa Marcha", foi despojado de suas funções oficiais e compelido pelos guardas vermelhos a desfilar nas ruas com um cartaz nas costas que dizia: "Bandido Capitalista nº 2" (o "Bandido Capitalista nº 1" era o presidente da República Liu Shao-Shi, que morreu na prisão)!
Diferente de Mao, voluntarista e dogmático, Deng se caracterizou pelo seu pragmatismo e realismo psicológico. Exemplo de pragmatismo é sua obsessiva recomendação de "extrair a verdade dos fatos". Ou o famoso aforisma de que "não importa a cor do gato, desde que cace os ratos". Exemplo de realismo psicológico é seu desafio ao igualitarismo marxista: "Enriquecer-se é glorioso". Esse mote revela percepção do princípio básico da acumulação capitalista: o melhor estímulo à eficiência produtiva é o direito do agente econômico de auferir o fruto de suas faculdades. As civilizações podem e devem ser embelezadas pelo altruísmo. Mas são construídas pelo egoísmo.
Diz a piada polonesa da epígrafe que o socialismo é apenas um estágio transitório entre dois capitalismos. A verdade entretanto é que a transição do socialismo real para o capitalismo tem se provado uma navegação difícil em mares refertos de arrecifes. A China de Deng e a Rússia de Gorbatchev seguiram rotas diferentes. Gorbatchev proclamou simultaneamente a liberalização política ("Glasnost") e a liberalização econômica ("Perestroika"). Na prática, só a primeira vingou. E forças centrífugas represadas, num contexto de estagnação econômica, provocaram sua queda, seguida da dissolução do império soviético. Deng Xiaoping não foi além de reconhecer, em seus escritos, a superioridade do sistema político ocidental (em contraste com o sistema "feudal" de sucessão na China), mas sempre se recusou a abandonar o monopólio político do partido, reagindo brutalmente a reclamos de abertura democrática no episódio de Tiananmen.
Procurou, por assim dizer, comer o pudim pelas beiradas. Substituiu a liberalização política pela descentralização administrativa, dando maior espaço respiratório às províncias e governos locais. Liberalizou os mercados agrícolas e satisfez em parte o instinto de propriedade pelo artifício de contratos fundiários de longo prazo. Estendeu a liberalização, experimentalmente, ao comércio e indústria das regiões costeiras, admitindo preços flexíveis e um grau de desinibição empresarial quase capitalista. Criou, em suma, duas Chinas: a dinâmica China costeira, que hoje exibe a mais alta taxa de crescimento do mundo, em moldes capitalistas, e a China interiorana, com rígidas rotinas socialistas e megaempresas estatais. Pode-se assim dizer que aplicou internamente a fórmula de política externa que sugeriu para a retomada de Hong Kong e eventual reunificação de Taiwan: "Um só país e dois sistemas".
No enfrentamento dos problemas criados pelo colapso mundial do socialismo, a China teve algumas vantagens sobre a antiga União Soviética. Primeiramente, menores conflitos étnicos. A União Soviética era uma jaula de nações, com mais de cem grupos étnicos, alguns dos quais tinham experimentado interlúdios de independência, como a Ucrânia, a Georgia e os países Bálticos. Na China, mais de 90% da população são da etnia Han, os "filhos do imperador amarelo". As tensões étnicas se reduzem basicamente ao Tibet e à província ocidental de Xinjiang, na qual predominam etnias Urgus e Kazaks, de fé islâmica. A segunda vantagem foi a absorção do "capitalismo por osmose". Prósperos núcleos de cultura chinesa surgiram em vários pontos do leste e sudeste da Ásia, como Hong Kong, Taiwan e Cingapura. Pode-se mesmo falar numa "grande China", que além desses países incluiria dinâmicas minorias na Indonésia, Malásia e Tailândia. Todos esses núcleos demonstram a aptidão básica do confucionismo chinês para o desenvolvimento capitalista. E constituíram um reservatório de talento empresarial e capital financeiro que trouxe contribuição decisiva à recente explosão de crescimento, de Cantão e Xangai. A União Soviética, por contraste, nunca contou com reservatórios comparáveis de capital financeiro e humano. Não podia absorver "capitalismo por osmose". Tinha que aprendê-lo nos rudes embates do mercado.
Há quem diga que o século 21 será do Pacífico, ofuscando-se com o crescimento da China o apogeu americano. Chegou mesmo a ser moda falar-se no "decadentismo" ou "declinismo" americano. A recente reação da economia americana através de proezas tecnológicas demonstrou ser prematuro esse pessimismo. E a razão fundamental está na associação, mais estreita dos Estados Unidos que em qualquer outro país, entre capitalismo competitivo e liberdade política. A competição excita a criatividade e o pluralismo político facilita a experimentação.
Pedro, o Grande, e Deng Xiaoping tiveram realizações comparáveis e erros comuns. O czar absorveu com incrível velocidade a "revolução da engenharia", que no século 18 trouxe progresso à Europa. Mas não aprendeu a lição de que esse progresso se devia principalmente ao clima libertário criado pela Reforma e Renascença, que se traduziu em instituições políticas crescentemente participativas.
Mutatis mutandis, o mesmo aconteceu com Deng, que acreditou ser possível desvincular quase indefinidamente a modernização econômica da modernização política. A curto prazo, teve êxito. A longo prazo, acumulam-se as tensões. À míngua de contestabilidade, os sistemas politicamente fechados tendem a se tornar corruptos, é alta a taxa de desperdício e baixa a originalidade criativa. O "liberalismo burguês" de que Deng falava pejorativamente foi um dos mais importantes insumos do progresso ocidental!

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