São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Dia na marcha do MST tem 19 horas

Sem-terra seguem código de moral rígido

LUIS HENRIQUE AMARAL
ENVIADO ESPECIAL A CAMPINAS

Os sem-terra da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça acordam às 5h. Andam sob o sol forte, descalços ou de chinelo, em um asfalto tórrido. Respiram fumaça de caminhão. Às vezes, tomam chuva, o que consideram um refresco.
A rotina, que só acaba à meia-noite, é dura. E talvez explique por que nenhuma das lideranças nacionais do MST (Movimento Nacional do Trabalhadores Rurais Sem Terra) esteja na marcha.
Os que caminham são pouco mais de 600. Saíram de São Paulo na segunda-feira passada e pretendem chegar a Brasília em abril.
Com raras exceções, têm menos de 25 anos. A proporção é de uma mulher para cada 15 homens, aproximadamente.
Depois da ordem para acordar, o dia começa com uma fila para apanhar um pão francês com manteiga e uma xícara de café com leite.
Alguns dias, eles organizam depois do café o que chamam de "mística". Trata-se de uma pequena representação teatral.
Na quinta-feira, por exemplo, quando deixavam Jundiaí, uma bandeira foi colocada sobre o carro de som, enquanto um locutor, escondido, dizia: "Eu sou a bandeira do MST. O meu vermelho representa o sangue dos trabalhadores rurais mortos".
Depois de descrever o significado da bandeira, o locutor encerrou lembrando: "Eu mereço respeito, não devo ser usada como lençol".
Após os aplausos à "mística", dão alguns gritos de guerra e começam a andar. Apesar de a maioria ter entrado no MST pela porta da Igreja Católica, não há orações.
Segurança
A marcha do MST é silenciosa. O ritmo é acelerado. Em média, a fila de 600 pessoas anda a um pouco mais de 5 km por hora.
A marcha se divide em duas colunas. Entre elas, há dois metros. Assim, é praticamente impossível conversar. A exceção fica por conta dos poucos casais, que vão de mãos dadas. Os seguranças não permitem que não-casais caminhem conversando.
Quem sai da fila, ouve do segurança: "Ô rapaz, se enquadra aí".
A preocupação com o visual é grande. Um jornalista que acompanha a marcha teve que comprar um boné novo porque o seu, com propaganda de cigarro, estaria "estragando", como explicou um coordenador, a imagem do grupo.
Nos últimos dias, a marcha tem provocado longos congestionamentos. Apesar da chateação, poucos motoristas xingam os sem-terra. Pelo contrário, são comuns acenos simpáticos.
"Isso mostra que a imagem do MST está mudando junto à sociedade", diz Edivar Lavratti, que apesar dos 21 anos é um dos principais coordenadores da marcha.
Código de ética
Ao chegar ao local onde dormem, as malas, que viajam de caminhão, já estão separadas por Estado. Assim, a divisão do espaço respeita a origem geográfica do sem-terra. Homens e mulheres dormem juntos. Os casais, agarradinhos. Há um código de moral.
"Quem quer respeito precisa respeitar. Ninguém mexe com a mulher do outro porque um dia pode estar com a sua e não poderá cobrar respeito porque não respeitou", explica Vilson Santos, 21, que nasceu em um assentamento de sem-terra gaúcho.
O álcool é proibida. Mas nem todos respeitam, apesar de ninguém ter aparecido embriagado até agora. Quanto ao jogo, a norma é mais rígida. Nada de baralho.
À noite, a principal diversão é a música. Muito pagode e sertanejo. Os gaúchos e catarinenses tomam chimarrão. Muitas rodas de conversa se formam. Meia-noite, as luzes se apagam.

Leia mais sobre a marcha do MST às págs. 1-7 e 1-8

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