São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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O fim da inocência pop

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1967, a juventude tinha pelo menos três motivos para sentir que a revolução, tanto faz qual, estava no ar. Naquele ano, foram lançados dois marcos da história da música pop: o primeiro disco dos Doors e a experiência radical da turma formada por Velvet Underground, Nico e Andy Warhol. Mas nada foi comparável ao lançamento de "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles.
O "Sgt. Pepper's", por certo, contém elementos, se não idênticos, muito semelhantes aos que distinguem esses dois discos. Ele é uma ruptura da imagem "boazinha" dos Beatles em direção a uma radicalização musical e comportamental (o que já estava anunciado de forma menos acabada no disco do ano anterior, "Revolver"), representa uma declaração de independência das formas mais básicas do pop, ao introduzir referências da música erudita, sonoridades indianas e uma dissonância vanguardista, e, claro, influenciou todo mundo. Só que, à época, os Beatles eram "mais famosos que Jesus Cristo", segundo uma declaração tão impertinente quanto precisa de John Lennon. Ou seja, o que os Beatles faziam e falavam tinha a força de um evangelho.
Esse poder, nem Doors, nem Velvet jamais tiveram. Não só porque essas bandas tinham públicos mais restritos em termos numéricos. Os Beatles eram rebeldes sob medida para o consumo generalizado, mas ainda assim ousados. Tomavam drogas (e declaravam isso publicamente), mas eram condecorados pela rainha Elizabeth. Escreviam uma canção viajandona, como "Within You Without You", mas faziam brincadeiras circenses, como "Being For the Benefit of Mr. Kite!".
O álbum, que vendeu nos primeiros três meses 2,5 milhões de cópias, vinha embalado em mistérios. Os Beatles eram muito bons nisso, em inventar ou deixar que inventassem os mais diversos boatos, histórias e teorias a seu respeito. Só para citar algumas: começa da capa, com seus ícones da cultura pop -Marilyn, Aleister Crowe, Marlon Brando- à beira do túmulo dos "velhos Beatles". As fotos internas que mostram Paul McCartney de costas (prova inconteste, dizia-se, de que Paul "estava morto"). A faixa "L(ucy in the) S(ky With) D(iamonds)", que traria, no título, uma referência a LSD e, na letra, a descrição de uma viagem de ácido. Os personagens mais ou menos absurdos: o próprio Sgt. Pepper, a "lovely" Rita, Henry the Horse etc.
Trinta anos mais tarde, a mística ainda resiste entre os fãs mais ortodoxos, mas o fato é que não importa se Paul está cada vez mais vivo e careta, se Lennon jurou de pé junto que "Lucy" foi composta a partir de um sonho de seu filho Julian, se copiaram e parodiaram a capa de "Sgt. Peppers's" à exaustão, se a experiência de "crossover" com música erudita foi dar no hediondo rock progressivo. Importa, isso sim, que todo mundo (ou quase) que se drogou de alguma forma depois de 67, tenha viajado pelo menos uma vez ao som de "Lucy". Importa que todo mundo (ou quase), quando saiu da casa dos pais, fugido ou com consentimento, tenha se lembrado do refrão de "She's Leaving Home" enquanto empacotava suas coisas. Importa que ouvir McCartney cantando "we're sorry but it's time to go" na segunda parte de "Sgt. Pepper's" equivale à despedida de um amigo, que depois retorna com a intrigante "A Day in the Life". Importa, tanto em 67 como hoje a antena privilegiada que os Beatles tinham para captar aquele presente e pressentir o futuro.
"Sgt. Pepper's" é, até aquele momento, um dos discos mais trabalhosos da história da música pop. O "quinto Beatle", o produtor George Martin, escreveu um livro inteiro ("Paz, Amor e Sgt. Pepper's", Relume-Dumará) sobre a gravação do disco, que consumiu 129 dias. O que talvez estivesse por trás de tanta inquietude, experimentação, elaboração era uma pergunta crucial nos anos 60, percebida pelo jornalista da "Time" que escreveu quatro páginas sobre o disco (capa da revista em 22/9/1967). O redator, a propósito da frase de Lennon sobre Jesus, atribui-lhe o seguinte sentido: "Ele (Lennon) está colocando a questão: que tipo de mundo é esse que faz mais barulho em torno de um culto pop do que em torno da religião?". Pode-se substituir, com tranquilidade, religião por "política", "ideologia", "moral". Ou ainda, abreviar para "que tipo de mundo é esse?".
Guiado pelos Beatles, o jornalista da "Time" tinha percebido que o mundo não era mais o mesmo. O que ainda lhes escapava naquele momento é que o mundo também não seria exatamente aquele desejado pelos jovens que sorviam as palavras dos Beatles, acreditando que bastaria a "little help from my friends". Os vários sonhos da era hippie iriam acabar logo ali, no final dos anos 60, depois que a imaginação tentou tomar o poder e perdeu. De novo, Lennon acertaria, declarando que "o sonho acabou", ao dissolver a banda em 70.
A revolução que estava no ar e que os Beatles irradiam em 67 malogra, de certa forma. Entretanto, o mundo mudou de fato. Absorveu, devidamente domadas, algumas das reivindicações daquele período, como uma certa liberacão sexual, uma certa tolerância em relação às drogas, uma certa liberalização de costumes.
Só que, num movimento perverso, transformou alguns dos canais por meio dos quais os jovens exigiam as mudanças nos anos 60 em veículos privilegiados para uma conformidade massiva às regras do jogo. Com "Sgt. Pepper's" estabelecem-se os signos, os procedimentos e os mitos do pop. Talvez seja algo exagerado, mas nem por isso incorreto, afirmar que antes dos Beatles havia popularidade. Depois, culto pop -ou seja, esse passe de marketing que transforma uma banda, um músico, um ator e, hoje em dia, até um "nerd" de computador em autoridade suprema sobre qualquer assunto, criando em torno dele todo um universo de moda, comportamento, produtos e até de idéias.
Essa aparentemente pequena, mas decisiva, transformação viraria de pernas para o ar a face, o formato e o alcance dos fenômenos da indústria cultural pelos próximos 30 anos. Ainda assim, ouvir "Sgt. Pepper's" em 97 é um antídoto contra a caretice e o conformismo, que andam se alastrando como praga. Ainda que remeta à perda irreparável da inocência da música pop, contém um senso de absurdo, uma vivacidade estilística e uma coragem de experimentar que todas as bandas dos anos 90 deveriam invejar.

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