São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Bat-poética

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Era um rapaz muito diferente. Quando subiu ao palco do 3º Festival de Música Popular Brasileira, de cabelos encaracolados e gola rulê, trazendo à retaguarda as guitarras elétricas de um grupo pop argentino, chamado Beat Boys, alguma coisa começou a acontecer nos corações futuristas do nosso querido Brasil.
Aos primeiros acordes, surpresa. O que seria aquilo? Música brasileira de verdade? Música brasileira americanizada? Por que estrangeiros, e logo argentinos, com guitarras? Seria iê-iê-iê ou puro deboche?
Ao fim, uma sinfonia de certezas e incertezas: sem dúvida tratava-se de uma marcha, mas usava roupa dos Beatles e da Jovem Guarda; os acordes e a harmonia eram simples, mas pareciam muito complexos; a letra era pop, mas de uma ousadia poética inusual.
E o rapaz? O rapaz que resolveu, ao fim da apresentação, atirar-se ao chão, numa atitude cênica incomum naquela época em que o padrão era a sobriedade do banquinho e do violão ou o intérprete de peito estufado trajando smoking -quem era, afinal, esse rapaz?
-"Eu sou o 'Rei da Vela', de Oswald de Andrade, montado pelo grupo Oficina. Sou brasileiro, sou casado e sou solteiro, sou baiano e sou estrangeiro. Adoro meu pai, minha mãe e meus irmãos, mas não tenho família. Eu sou Caetano Veloso. Meu coração é do tamanho de um trem" -respondeu, depois do Festival.
Caetano não era exatamente um desconhecido antes de "Alegria, Alegria". Seu talento já havia sido notado em canções como "De Manhã" ou "Boa Palavra", e sua participação no debate sobre a "crise da MPB" já revelara uma consciência rara no meio musical.
Em 66, na "Revista de Civilização Brasileira", ele anunciava claramente o que deveria ser -e foi- feito nos anos seguintes: "Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema".
No mesmo depoimento, apontava João Gilberto como a ponta do novelo da modernidade a ser retomada: "João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira". Mas o Caetano de "Alegria, Alegria", mesmo para aqueles que defendiam a bossa nova dos ataques nacionalistóides, parecia um tanto extravagante. Demasiadamente próximo da cultura pop e do palco da Jovem Guarda -contra os quais movia-se uma "guerra santa".
"O que aconteceu com Caetano Veloso?", perguntava Carlos Acuio, na introdução de uma entrevista, em dezembro de 67.
Caetano respondia: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot dogs". "Venho-me interessando mais pela poesia iê-iê, pela vitalidade natural da música vulgar e comercial, do que pelo intelectualismo em que haviam caído todos os que se acreditavam continuadores de Caymmi, Noel e outros." "Estou-me esforçando para respeitar meu público, que é jovem como eu, e está também interessado em que sejamos gente do mundo de agora." Ser gente do mundo de agora, ser um país do mundo de agora, uma cultura do mundo de agora.
E de quem era o mundo de agora? "O mundo realmente é de Batman", provocava Caetano, causando urticárias na esquerda nacionalista, nos arautos das "raízes", nos violeiros do protesto "antiimperialista".
"Alegria, Alegria", ao lado da primorosa "Domingo no Parque", de Gilberto Gil, é um marco da canção moderna brasileira. Um exercício antropofágico que cumpre o dever de casa da lição Pau-Brasil: "Contra a argúcia naturalista: a síntese. Contra a cópia: a invenção e a surpresa".
Sem perder o fio da tradição, Caetano constrói sua estranha marcha, usando elementos do "mundo de agora". Absorve os ecos de Liverpool, introduz instrumentos da área pop e atitudes e conteúdos que se aproximavam da contestação hippie.
Não por acaso, muitos viram nas iniciais de "sem lenço e sem documento" uma menção cifrada ao LSD. E logo depois do festival, o rapaz, que "nunca mais foi à escola", seguiu para a Bahia, onde casou-se com Dedé Gadelha numa cerimônia "flower power".
"Alegria, Alegria" é, também, uma injeção de criatividade na poética da palavra cantada brasileira. Num momento em que a bossa nova aguava-se no sorriso e na flor e que a MPB de raízes enveredava pela "protest song", Caetano surge com uma letra "nouvelle vague", feita de estilhaços de imagens, adotando procedimentos da poesia e do cinema de vanguarda para falar de um Brasil novo, mais internacionalizado, fragmentado, moderno e mais jovem. Sem esquecer a visão crítica da própria música popular, no conhecido verso "uma canção me consola".
Um mundo de espaçonaves e guerrilhas, Coca-Cola e Brigitte Bardot. Augusto de Campos, em 67, resumia, a quente: "Furando a maré redundante de violas e marias, a letra de 'Alegria, Alegria' traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada isomorficamente através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da 'implosão informativa' moderna (...) É o mundo das 'bancas de revista', o mundo da comunicação rápida, do 'mosaico informativo' de que fala Marshall McLuhan".
Claro que "Alegria, Alegria" não foi -muito menos naquele ano tão fértil- um fato isolado. Nem mesmo na área da música popular, em que se erigiu como marco, ao lado de "Domingo no Parque" e, logo a seguir, "Tropicália". Mas, sem ela, a tradução e o "aggiornamento" de um momento cultural muito importante da história brasileira não seriam tão completos.
A canção, ao lado de "O Rei da Vela", de Zé Celso, "Terra em Transe", de Glauber Rocha, e o ambiente "Tropicália", de Hélio Oiticica, formou o abre-alas do tropicalismo, que se consolidaria, em 68, como o último grande movimento cultural do país.
E viva Chico Science!

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