São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O repouso da história

O romance "O Paciente Inglês" é relançado

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A palavra "história" vem do grego e significa originalmente "conhecimento narrado" ou aprendizado pela narrativa. Para Heródoto (c. 485-425 a.C.), o autor de " Histórias", obsessivamente lembrado pelo paciente inglês de Michael Ondaatje, o conhecimento dos homens passa necessariamente pelo aprendizado do que passou: é no curso ou por meio desse mergulho nas "histórias" que se cumpre o mandato délfico de conhecer a si mesmo.
Jogados pelo acaso numa "villa" do norte da Itália, o quarteto de personagens principais deste romance construído musicalmente -sugerindo mesmo algum grande adágio para quarteto de cordas- oscilam entre a necessidade de lembrar e esquecer as histórias recentes dessa "época esquisita, o final da guerra". Da enfermeira Hana, que perdeu o pai e um filho (em gestação), ao paciente inglês -caído, em chamas, num deserto ao norte da África, transportado por uma tribo e recolhido pelo exército italiano e agora sob os cuidados de Hana, na mansão abandonada- ao "sapador" (desarmador de bombas) indiano, defendendo um país que não é o seu, numa guerra que não é a sua, mas sem saber de fato o que é seu, neste século de tantas migrações; e ao ladrão italiano Caravaggio, recuperando-se de uma temporada no serviço secreto dos aliados e da tortura nas mãos da contra-inteligência alemã, todos parecem em suspenso, numa cadência interminavelmente prolongada, à procura de uma nova tônica para a vida em ruínas.
Cada um luta para conseguir o que Hana chama de repouso: "receber todos os aspectos do mundo sem julgamento" e ser capaz de exercer a "ternura consigo mesma". A prosa de Ondaatje também parece especialmente receptiva à ternura e à sensação. Em seus melhores momentos, o livro se deixa nutrir do estranhamento de todas as coisas: vozes, cheiros, luzes, cores, nomes, gestos, gostos, a consciência em carne viva, registrando tudo como pela primeira vez ou como se fosse possível voltar a um mundo menos cheio de história. É uma literatura de imagens e de espaço, mais do que de movimento; uma cinematografia verbal, admiravelmente recriada para o cinema por Anthony Minguella.
Os livros que Hana vai lendo para seu paciente sem nome, embalado pela voz e pela morfina, "apresentavam saltos na trama como pedaços de uma estrada arrastados pela enchente... como se trechos do reboco descolado pelo bombardeio tivessem caído de um mural durante a noite".
E assim também esse romance vai se formando aos pedaços, caminhando para frente e para trás, repetindo cenas com novos detalhes, à medida que a identidade do paciente vai-se tornando clara para ele mesmo e os outros. As narrativas duplas são mais do que um artifício, neste livro artificioso. Pois o sentido real das histórias só se forma na segunda vez, e o livro todo é um esforço de narrar as coisas novamente, depois da primeira tentativa tosca, que é a própria vida de cada um. É um livro de memórias e um livro de nômades, tema por excelência de Ondaatje, nascido no Sri Lanka, educado na Inglaterra e residente há anos no Canadá.
"Daqui para a frente, ou vamos encontrar, ou vamos perder nossas almas", diz Hana ao sapador Kip, espelhando o outro grande caso amoroso do livro, que é o mistério, perdido para trás, do paciente inglês. A busca deliberada, ou desesperada, de uma beleza humana para além de pátria e nome, uma existência no deserto -homens, areia e deuses- faz deste livro um dos grandes romances de amor do nosso tempo, uma espécie de "Adeus às Armas" (1929), de Hemingway, traduzido em tons da nova Europa sonhada por alguns europeus. Não por acaso, é um grande livro do multiculturalismo e, em especial, um livro do deserto e do Egito, tanto quanto da Itália como símbolo da Europa mais antiga. E não por acaso, no livro (Hana), como no filme (o amor do paciente inglês), são as mulheres as grandes figuras, jogando suas luzes sobre homens em tempos difíceis.
Nem sempre, infelizmente, Ondaatje está acima de um certo sentimentalismo e de pronunciamentos gnósticos da ordem de "palavras... Elas têm um poder", ou "uma canção feita de luzes de conchinhas de caracol", reforçados, aqui e ali, por um português quase sempre legível, muitas vezes bem mais do que isso, mas capaz de resvalos para o "tradutês", como "vaso de peltre" (estanho) ou "morreu de consumpção" (tuberculose). Nem sempre, ainda, o virtuosismo da forma e as altas ambições do romance impedem que ele descambe para um repertório menos elevado, que causa algum desconforto, pelo menos para leitores que aceitam o considerável risco de Ondaatje como escritor. Nesses momentos (que, no livro, como no filme, vão-se acumulando da metade para o fim), "O Paciente Inglês" sugere alguma coisa como um Jorge Amado reescrito por Alain Robbe-Grillet -fórmula improvável, mas, quem sabe, o modelo para uma grande literatura popular dos anos 90.
Para além de seus relativos méritos, o relançamento do livro no Brasil, cinco anos depois da primeira edição inglesa, pode chamar a atenção, também, para uma geração inteira de novos escritores dessa era "pós-colonial". Kazuo Ishiguro e Salman Rushdie são os nomes de ponta num grupo cada vez mais reconhecido e que inclui nomes como o nigeriano Ben Okri e o indiano Vikram Seth, já muito publicados e premiados, mas também autores mais recentes, como Amitav Ghosh, Haneif Kureishi e Ahdaf Soueif, na Inglaterra, e Fay Ng e Gish Jen, nos EUA.
"As Obras Completas de Billy the Kid" e os seus quatro livros de poemas, mais o romance "In the Skin of a Lion" (Na Pele de um Leão), já haviam conquistado um lugar de destaque para Michael Ondaatje nesta companhia. Ajudado agora pelo filme de "O Paciente Inglês", ele ascende ao patamar de uma audiência mundial e pode chegar, quem sabe, à sua melhor literatura.

Texto Anterior: OS BRITÂNICOS
Próximo Texto: Crônica da vertigem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.