São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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O fim da transição liberal

Controle social da economia é a nova tarefa dos Estados

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Bem lentamente, mas já de forma clara, saímos, em todos os países do mundo, daquilo que chamei de transição liberal e nos esforçamos em submeter a economia, que é o domínio dos meios, a fins que denominamos justiça, liberdade ou direitos do homem, conferindo a tais palavras sentidos a um tempo cada vez mais novos e precisos. Pois esta consciência só pode desenvolver-se se reconhecermos que o modo de controle social da economia, triunfante na era de desenvolvimento nacional do pós-guerra, esgotou-se e tornou-se muitas vezes um instrumento de conservadorismo, mais que de progresso social.
Há que se abandonar, e de fato abandonamos, a alternativa retórica e ideológica entre um liberalismo extremo, partidário (contra a evidência) de que o mercado sempre alocará os recursos da forma mais justa e eficaz, e um nacionalismo populista que nega o evidente, a saber, que um país isolado das trocas e da concorrência mundial se fecha no subdesenvolvimento, como foi o caso soviético.
Mas, para sair destes falsos debates extenuantes, devem ser feitas duas operações intelectuais. A primeira consiste em definir a nossa situação como a passagem de um tipo de controle social da economia a um outro, fórmula que rejeita a uma só vez a idéia de que entramos de modo duradouro numa sociedade liberal, ou seja, onde a economia não é regulada por outras forças que não as suas próprias, e a idéia que insiste no fato de podermos reanimar as políticas sociais do período anterior.
A segunda consiste em dizer o mais claramente possível o que deve ser abandonado, conservado, aceito ou criado na nova situação. Uma tal "démarche" consiste em dizer do que constava a autonomia da atividade econômica e o indispensável controle social da economia e como esta autonomia e subordinação da economia diante de objetivos sociais devem ser formulados no presente e no futuro.
O que há de se abandonar -e já o foi em grande parte- é o Estado empresário, o que supõe também o abandono de uma concepção produtivista e, a bem da verdade, industrialista da economia, de que a preferência soviética pela indústria pesada e a planificação foi um exemplo extremo, relativamente eficaz durante a reconstrução do pós-guerra, mas que se tornou paralisante a partir dos anos 60.
O que deve ser mantido ou mesmo reforçado do passado é o Welfare State tal como ele foi criado na Europa, de início nas nações escandinavas, depois na Grã-Bretanha, França, Alemanha, nos Países Baixos e em inúmeros outros países. Na América Latina, as políticas de proteção social são ainda extremamente insuficientes, sobretudo pelo vulto do setor informal. A obra de integração social e nacional está longe de ser concluída.
No Brasil, é verdade, uma das transformações vitais do país é o que podemos chamar de nacionalização da economia, reforçada pelo fato de que são as regiões mais pobres as que mais se beneficiaram com o sucesso do Plano Real, e que é marcada pelo descontentamento dos meios comerciais de São Paulo para com um presidente, entretanto, paulista.
A política econômica que se impõe ao futuro é a manutenção da luta contra a inflação e uma política macroeconômica ajustada à competitividade internacional. Afirmação que está longe de ser evidente e que é mesmo contestada com frequência, pois os seus efeitos podem ser perigosos, mas da qual é impossível escapar. De resto, o sucesso do Mercosul e o dinamismo da exportação de muitas regiões -penso sobretudo em Goiás- demonstram, sem sombra de dúvida, o caminho a seguir.
É mais difícil e mais importante, em consequência, definir os limites que se devem impor à lógica do mercado. Quanto a isto, a Europa ocidental formulou o problema e instigou o debate com a máxima clareza. A questão que domina todas as outras é a seguinte: aceitaremos que o mercado de trabalho seja o mais flexível possível, isto é, que uma proporção elevada de empregos, a metade pelo menos, seja de prazo determinado ou de jornada parcial involuntária, e que se amplie o hiato entre as atividades qualificadas e competitivas e as menos qualificadas, afetadas pela robotização e pela transferência de empresas para o exterior?
É indispensável responder "não" a esta pergunta, mesmo que as pressões pela flexibilidade sejam fortes. Em solo europeu, a precariedade triunfa na Grã-Bretanha, e na Alemanha cerram-se as fileiras dos que a consideram indispensável, ainda que personalidades tão importantes quanto o presidente da Daimler-Benz, depois de pugnarem por essa política, tenham regressado à defesa da economia social de mercado, e que os sindicatos tenham movido uma guerra vitoriosa contra todos os projetos de lei favoráveis à flexibilidade. Ninguém pode prever o que ocorrerá no dia em que Kohl, homem de direita, mas avalista do modelo alemão de economia social, abandonar o poder. É na Coréia do Sul, país de sindicalismo militante e por vezes violento, que acaba de eclodir a primeira greve de importância mundial contra a flexibilidade. Trata-se de um verdadeiro renascimento do conflito de classes em torno dos problemas do trabalho e do emprego, no momento em que, com demasiada leviandade para meu gosto, cogita-se do fim do trabalho.
Uma vez definidos os termos do problema -coisa que nada resolve, mas localiza e limita os debates e os conflitos- deve-se insistir na necessidade prioritária de reanimar o sistema político, ou seja, a capacidade de criar um debate nacional sobre essas escolhas fundamentais. A maioria dos países não logra criar este debate. Na América Latina, ele existe somente no Chile atual -e isso é fato recente, desde o dia em que se dissiparam, graças em parte a um relatório do Banco Mundial, as ilusões desse país que se definia ingenuamente como um novo dragão e hoje reconhece que seus grandes êxitos econômicos não ensejaram um progresso social paralelo. Quanto ao Brasil, ele fez a melhor escolha ao afirmar a combinação de abertura econômica e integração social nacional. Mas ele sofre de duas graves fraquezas. Se as idéias são claras e justas na cúpula do Estado, o sistema político é muito fragmentado, organizado ao redor da defesa de interesses locais ou setoriais para ser capaz de tomar opções globais no tocante à política econômica e social do país. Segundo, a ordem da lei não se impõe em lugar algum, nem na cidade nem no campo, e a violência ilegal priva o mundo político da confiança da população. O presente é tão obsedante que se torna difícil pensar no futuro.
Esses obstáculos, porém, que são consideráveis, não devem fazer esquecer que o Brasil elegeu alternativas políticas gerais mais racionais e mais capazes de integrar objetivos econômicos e objetivos sociais do que o México, a Colômbia, a Venezuela e o Peru. Não cito aqui a Bolívia que, apesar de sua pobreza, sustentou uma política cujas fraquezas não devem ocultar a justeza e os efeitos positivos ao longo dos últimos dez anos.
Todos esses países devem reforçar sua capacidade política, formular um modo de combinação de objetivos econômicos e sociais, definir uma estratégia de travessia da transição liberal. Mesmo para além do final do século, esta será a prioridade: reforçar a análise, a programação e a gestão da difícil passagem dos regimes nacional-populares do pós-guerra a políticas de integração social numa economia mundial aberta. Daqui a 50 ou 100 anos, poderemos chamar de países desenvolvidos aqueles que tiverem sabido resolver este problema.

Tradução de José Marcos Macedo.

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