São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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O trunfo secreto de Zé barbeiro

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Durante muitos anos, morei em uma casa na avenida Angélica, junto à praça Buenos Aires, para melhor identificação do leitor paulistano. A casa -quase não seria preciso dizer- desapareceu, mas do outro lado da rua ainda existem dois prédios de apartamentos, os primeiros construídos na avenida. Em um deles, existe até hoje um salão de barbeiro, o Salão Ideal, que, na época desta história, era comandado por um filho de imigrantes italianos. O qualificativo que ele escolhera, substituindo um sobrenome banal, estampava suas qualidades profissionais. Não era um Milani ou um Temperani qualquer e sim José, o penteador.
Frequentei o salão desde criança. Quando tive idade para escolher um barbeiro por minha livre iniciativa, me fixei em uma figura que, apesar de José, pouco ou nada tinha a ver com o patrão. Era o Zé barbeiro, um caipira da região de Rio Preto. Zé barbeiro tinha idade indefinida, cabelos lisos e bastos de índio, algumas rugas no rosto e o gosto -não se tratava de vício- de pitar disfarçadamente um cigarrinho de palha entre um freguês e outro.
Barbeiros e clientes, sobretudo quando estabelecem uma relação fixa, desenvolvem uma conversa comprida a respeito de tudo e de nada, interrompida aqui e ali por um "tá bom assim", por um "tira mais desse lado". O ritual termina, de repente, por uma sacudida de toalha e uma ligeira inclinação do profissional da tesoura, anunciando que a obra está terminada.
Essas relações típicas não se estabeleciam entre mim e Zé barbeiro. Fossem quais fossem os temas, minhas tentativas de conversa morriam nas primeiras palavras, pois meu presumível interlocutor simplesmente emudecia. Ao longo dos anos, vi meus fartos cabelos, grudados com Gumex no retoque final do corte, transformarem-se em fiozinhos ralos. Às vezes, eu achava que a marcha do desbastamento era lenta; em dias de maior realismo, ela me parecia devastadora. Porém, qualquer que fosse minha avaliação, não conseguia extrair de Zé barbeiro mais do que um grunhido, a respeito daquela questão aparentemente de sua especialidade.
Quando a manicure passava com seus instrumentos para atender a algum velhote de mãos trêmulas, Zé barbeiro não fazia o menor comentário sobre suas formas arredondadas. Coisa inusitada, não se interessava por corridas de cavalo ou por futebol, alheio ao sonho típico dos barbeiros e a uma paixão coletiva. Nem mesmo a conversa sobre o tempo -tema padrão que abre a boca dos mais tímidos- ia muito longe. Se eu dizia que o dia estava abafado e à tarde vinha chuva, Zé barbeiro confirmava: "É, vem chuva". Se a minha conclusão sobre o dia banhado no mormaço fosse oposta, a confirmação se mantinha: "É mesmo, nem sinal de chuva".
Até que um dia, enquanto eu passava os olhos vagamente pelas páginas dos jornais, detendo-me um pouco mais em um ou outro assunto, Zé barbeiro intuiu algo que lhe interessava. E, pela primeira vez, me fez uma pergunta, embora temperada à moda caipira, ou seja, em um tom de quem não quer nada: "Você se interessa por palavras cruzadas?".
Não sou um especialista nessa arte, mas pelo menos me distingo da massa dos principiantes. Um principiante não sabe, por exemplo, que o enunciado "vanaquiá" tem um sinônimo de duas letras, idêntico na forma a um tempo de verbo, sem ter entretanto nada a ver com ele: o sinônimo de "vanaquiá" é "ia" e, caso o leitor não saiba, os dois vocábulos designam uma espécie de papagaio da fauna brasileira.
Mas esse conhecimento era poeira diante da sapiência cruzadística de Zé barbeiro. Pouco a pouco, ele me revelou o seu imenso saber, percorrendo a mitologia greco-romana, reizinhos medievais de segunda categoria, designações de misteriosas doenças, expressões célticas e tupis, nomes de plantas jamais pressentidos.
A erudição de Zé Barbeiro não era apenas o resultado de uma longa atividade empírica; era também o fruto da troca de informações com colegas, do manuseio exaustivo dos dicionários especializados.
Para pôr uma pedrinha no sapato da história, alguém diria que a ciência do Zé barbeiro não tinha conteúdo. De fato, quando em certa ocasião, na sucessão de grandes personagens, lembrou o nome de Lênin como principal líder da revolução bolchevista, supus que estava diante de um revolucionário camuflado. Logo me decepcionei, pois Zé barbeiro demonstrou total indiferença diante das iscas que lancei sobre as divergências ideológicas entre social-democratas e populistas ou sobre a incapacidade do proletariado chegar por si mesmo à consciência revolucionária.
Seria porém um grande equívoco rotular Zé barbeiro de "idiot savant", na desdenhosa expressão francesa. Ao não pretender aprofundar o sentido das palavras, o caipira de Rio Preto evitava a obsessão de querer saber sempre mais e mais, acompanhada da angústia da eterna falta. Decifrava um roteiro em código que lhe abria a possibilidade de cruzar reis assírios, peixes tropicais, deuses indígenas, ordenados segundo a lógica de um campo quadriculado.
Acima de tudo, o saber de Zé barbeiro valia para ele bem mais do que uma simples opinião sobre um páreo renhido ou um gol anulado. Era, na verdade, seu trunfo secreto, sua chave de ingresso em um reino especial, fechado ao conhecimento sem imaginação dos doutorzinhos de Higienópolis.

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