São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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O sonho edênico de um herege tropical

IRIS KANTOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por defender uma desconcertante e ousada cosmologia, Pedro de Hates Henequim foi condenado à morte pelos tribunais da Inquisição portuguesa em 1744. Entre a prisão e a condenação de Henequim passaram-se dois anos e oito meses, período em que o réu enfrentou o mundo kafkiano da justiça religiosa.
Suas proposições teológicas levaram à perplexidade os experientes inquisidores do Santo Ofício. A partir da leitura dos autos do processo inquisitorial, o historiador Plínio Gomes Freire explorou (em "Um Herege Vai ao Paraíso") o complexo jogo de linguagens e códigos culturais no qual vítimas e algozes estiveram inexoravelmente enredados.
O que torna particularmente notável o caso estudado é a excentricidade de suas idéias, que, como adverte o autor, possuem uma racionalidade própria, expressando, nessa medida, uma visão alternativa do mundo social. Por meio de sucessivas aproximações (1), o historiador reconstruiu a biografia, as matrizes culturais e os contextos históricos que conformaram a estrutura simbólica da cosmologia concebida pelo herege português, ex-minerador das Minas Gerais na primeira metade do século 18.
Em matéria de dogmas católicos, Henequim era um herege exemplar: quando acossado pelos inquisidores, fazia valer suas preocupações teológicas por meio de intermináveis duelos exegéticos em torno dos textos bíblicos, os quais ele dominava com alguma erudição e não menor astúcia.
Henequim defendia a tese de que o Éden estava geograficamente localizado no Brasil; demonstrava que o português era a língua falada por Deus; pregava que Trindade Divina não era una, mas formada por deuses; admitia que os anjos eram pecadores; anunciava o fim do pecado e do inferno para os homens; rejeitava o ritual eucarístico; e, ainda, dava notícias sobre a androginia da Virgem Maria, estendendo-se largamente na descrição da genitália muito peculiar da Santíssima. Plínio Freire Gomes vê em Henequim um autêntico criador de mitologias (no sentido levi-straussiano do termo), profeta de uma utopia paradisíaca no Novo Mundo.
Procurando compreender a estruturação interna deste imaginário, o historiador nos remete à experiência de Henequim como minerador durante as primeiras décadas de exploração aurífera em Minas Gerais. A babélica sociedade mineira dá sentido ao arranjo original de sua cosmologia: a convivência de homens de diversas procedências teria criado uma espécie de polifonia moral. Neste contexto, seu ideário procurava resolver os impasses dialógicos provocados pela presença de diferentes sistemas culturais em permanente estado de atrito, tensões que eram específicas ao processo histórico de formação da sociedade mineira colonial.
Recorrendo ao instrumental analítico proveniente da antropologia e da linguística contemporâneas (2), Plínio Gomes Freire trabalhou como um inquisidor às avessas, procurando extrair todas as consequências que esta cosmologia pode oferece ao conhecimento histórico. Entre elas, a idéia de que seu pensamento continha anseios de independência política, uma vez que, no limite, sua profecia indicaria a ruptura do pacto colonial.
Ao sacralizar a colônia luso-americana, mais correntemente percebida como espaço do purgatório, o blasfemador transformava-a em espaço de redenção milenarista. Entretanto, ao indicar as possíveis afinidades entre a cosmologia de Henequin e o episódio da Inconfidência Mineira em 1789 (pág.126), creio que o historiador acentuou em demasia os possíveis desdobramentos anticolonialistas deste imaginário. Não obstante o trágico desfecho pessoal, a vida rocambolesca de Henequim lembra um desses personagens macunaímicos que nos fazem refletir sobre os redivivos paradoxos que marcam a sociedade brasileira.

Notas:
1. Inspirado pelo historiador italiano Carlo Guinzburg.
2. Nomeadamente os modelos de análise estrutural dos mitos de Claude Lévi-Strauss e a interpretação histórico-linguística de Mikhail Bakhtin.

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