São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Uma história particular da vida brasileira

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os dois livros de João Baptista Ramos merecem leitura e reflexão, pois desventram a realidade política brasileira do após-guerra até o fim da década de 70, nas memórias narradas do autor, e aprofundam as questões de intimidade e de ação, que levam os homens públicos a tornar a vida uma aventura sempre insuspeitada, mesmo quando repetida.
"Agostinho, o Intruso" -uma autobiografia disfarçada- é um autêntico romance em que o autor apresenta a história de auto-justificação de seu personagem, desde a infância, em que os problemas de convivência familiar, formação moral rígida, mas sem profundidade, terminam por desembocar num casamento incompleto e na infidelidade conjugal estimulada em sessões de psicanálise. A segunda união com a mulher que lhe realizava os sonhos, ofertando-lhe a prole não obtida no casamento desfeito, foi a solução decorrencial previsível. O relato de uma carreira profissional e política forjada nas contendas e apoios do irmão, com quem sempre disputou, quando jovem, a preferência paterna, torna a leitura do romance agradável, fluente, num estilo narrativo em que o autor mais apresenta justificativas de seus dramas de consciência que soluções ao personagem criado, o qual se mostra resignado com a vida que levou, apesar de não muito convencido de que tenham sido suas opções as mais corretas. Quem não vive como pensa, termina pensando como vive.
O estilo agradável do romancista é, todavia, superado pelo estilo contundente do memorialista, sendo o segundo livro, "Sem Disfarce: Memórias", excelente e sincero retrato da vida política do país, nos 30 anos de vida pública do autor.
Narrando sua experiência como deputado, ministro do Executivo, presidente da Câmara dos Deputados e do Tribunal de Contas da União, torna pública a fragilidade das grandes decisões que conformaram a história do país, em que os personagens mais decidem por interesses pessoais -mesmo que aparentemente confundidos com os interesses nacionais, o que não é a regra-, não havendo nunca lugar para o vencido.
As figuras de Juscelino, João Goulart, Castelo Branco, Lacerda, Meira Mattos, Adauto Lucio Cardoso, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, Bonifácio de Andrada, Costa e Silva, Médici, Geisel, Buzaid desfilam nos saborosos diálogos travados com João Baptista Ramos em momentos delicados do país.
Muito embora tenha vivido período de militância política -em que não disfarça vislumbrar uma corrupção mascarada inequivocamente menor que a existente no atual-, não deixa de comparar os padrões éticos dos governos de Juscelino, Jango, Jânio, Castelo, Costa e Silva e Médici, épocas em que atuou como parlamentar e líder de partido. Lembra a permanente vocação do PSD de ser governo, até mesmo na eleição imposta de Castelo Branco, quando o futuro cassado, Juscelino Kubitschek, votou no presidente militar, assim como a teimosia udenista de Adauto em enfrentar Castelo Branco, visto que a UDN, mesmo quando vitoriosa, tendia a ser oposição. Por fim, descortina, no período revolucionário, uma real tentativa de reconduzir o país à democracia, muito embora a predominância do "economês" terminasse por violentar constantemente o direito, ao ponto de o Tribunal de Contas da União ter se transformado, à época, numa autêntica Casa de Tertúlias técnicas sem aplicação imediata. Neste período, não deixa de realçar a agilidade política de um Delfim Netto, que, fiel à política econômica mais do que à economia política e, vendo no direito um permanente estorvo, ditou as cartas por longo tempo no país.
O livro é um relato, leve e agradável, da história brasileira, naturalmente preservando, o autor, o período em que atuou, com o mérito de ter entrado na política como saiu, isto é, sem grandes recursos, com o que pode criticar mais acerbadamente os dias atuais, em que os políticos só fazem política, nela entram pobres e nunca dela saem sem fortuna considerável.
Conheci Baptista Ramos, quando presidi o diretório metropolitano do Partido Libertador em São Paulo, por indicação do senador Mem de Sá e do deputado Raul Pilla (1962/64), único momento em que fiz política, desistindo, de vez, quando da edição do Ato Constitucional nº 2, aquele que dissolveu todos os partidos políticos, criando dois conglomerados (Arena e PMDB). Confesso que a leitura do livro lembrou-me a figura do então presidente do PTB, elegante na conversa, direto nas intervenções e extremamente hábil nas negociações, sem transigências desnecessárias, perfil que também vislumbrava em seu irmão e meu amigo Nabantino Ramos, professor de direito econômico, com quem me encontrava semanalmente, nas mesas de debate da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dirigidas por Ruy Barbosa Nogueira.
Os dois livros auxiliam a compreender um pouco a história do Brasil desta segunda metade do século, pois o retrato que Baptista Ramos faz de muitas das figuras relatadas nas suas memórias -eu as conheci pessoalmente- não poderia ser mais fiel, mesmo quando apresentadas apenas em rápidos diálogos.
Dois livros, pois, que merecem ser lidos pela geração de hoje para que conheçam o Brasil de ontem.

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