São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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FHC e a reforma agrária

JOSÉ RAINHA JR.

Em recente viagem ao exterior, o presidente foi falar das grandezas de nosso país. Certamente disse que o Brasil está bem, a democracia, consolidada, o real é a moeda mais forte do planeta, o povo está comendo mais, a inflação está controlada. Isso sem comentar as belezas de Fernando de Noronha, das praias, do Carnaval, das mulatas de Copacabana, de matas, fauna e flora.
O que o nosso presidente não pensava e não sabe é que o povo da Europa não está preocupado somente com essas belezas do Brasil. Por isso, fizeram-lhe algumas perguntas até agora sem resposta: como está a reforma agrária? A punição dos assassinos de Eldorado do Carajás, bem como a dos seus mandantes? E Vigário Geral? Carandiru? Corumbiara? Candelária? Os meninos e meninas de rua? E os 11 milhões de desempregados? Os 42 milhões que passam fome? A violência urbana?
O presidente deu uma resposta curta e grossa: "Esse pessoal não conhece o Brasil". Agora sou eu quem pergunta, sr. presidente: quem não conhece são os europeus ou é Vossa Excelência?
Não tenho muito tempo de participação nas organizações sociais que lutam pela reforma agrária. A minha trajetória é do final dos anos 70, já no fim do regime militar. Mas, quando ouvi falar do sr., naquela época, tive admiração.
Vossa Excelência combatia o regime e buscava a democracia como forma de nosso povo ter liberdade, direito a um salário digno, sem fome, sem miséria.
Hoje o sr. é presidente, tem uma história muito mais longa do que a minha. O que aconteceu? O tempo o fez esquecer o passado, ou a democracia é meramente o povo ir às urnas e votar, manipulado pelos meios de comunicação?
Não consigo entender por que o sr. ataca o MST, uma organização social que luta pela terra, pela reforma agrária e pela democracia. Afinal, ocupar terras devolutas e improdutivas, que não cumprem sua função social, como está nos artigos 185 e 186 da nossa Constituição, é crime? Será que não é crime desrespeitá-la? Dizer que está fazendo a reforma agrária, que assentou 60 mil famílias em 96, quando o sr. sabe que, mesmo que as tivesse assentado, isso nada significaria diante da demanda?
Não é possível que o sr. não compreenda que a reforma agrária pela qual nós, do MST, lutamos está dentro da lei. Queremos o cumprimento da lei, e, quando ela só serve para favorecer os ricos e castigar os pobres, é de direito que os pequenos se rebelem.
O sr. sabe, também, que a reforma agrária não muda o caráter da sociedade de capitalismo para socialismo. O que não é crime é eu acreditar nos valores do socialismo.
Olha, presidente, o MST nunca teve o objetivo de perturbar a ordem e muito menos quer desestabilizar o governo. Disso o sr. tenha certeza. Nós somos um movimento que luta por terra e quer a reforma agrária como forma de consolidar a democracia. Não é possível dizer que existe democracia num país que tem uma estrutura fundiária concentradora como a nossa. Isso sem falar do trabalho escravo nas grandes fazendas do Pará, de Goiás etc.
O MST tem hoje amplo apoio da sociedade. Não são só os intelectuais da Europa que exigem reforma agrária e apóiam o MST.
Hoje a voz que clama nas ruas é a dos milhares de sem-terra que estão em marcha para Brasília, que caminharão mais de 1.000 km, protestando contra a lentidão da reforma agrária, exigindo punição dos mandantes e assassinos de Carajás, emprego e justiça social.
As vozes roucas estão no campo, nas ocupações, nos acampamentos, que somam mais de 50 mil famílias à beira das estradas, que clamam por um pedaço de terra para trabalhar e que a todo momento estão sendo perseguidas e assassinadas por aqueles que sustentam a tal reeleição e querem a privatização da Vale do Rio Doce.
Ter posição política contrária à do governo é democrático. O que não é democrático é um governo social-democrata querer incriminar um movimento social que reivindica os seus direitos.
Como Vossa Excelência sabe, 90% dos assentamentos realizados até hoje foram fruto de ocupações de terras e órgãos públicos, promovidas por trabalhadores sem terra. Isso demonstra que não são nem ilegais nem ilegítimas, como vosso governo está dizendo.
O MST só ocupa terra porque o governo não faz e não agiliza as desapropriações. Só ocupa o Incra porque as verbas para plantio e investimento não chegam aos assentados.
Nesse sentido, reafirmamos nossos objetivos de 1) assentar imediatamente todas as famílias de sem-terra acampadas; 2) obter a liberação de recursos suficientes para viabilizar os assentados e 3) punir os assassinos dos trabalhadores e os mandantes.
Esperamos da parte do governo vontade política de realizar a reforma agrária. E, assim sendo, passamos a crer que a democracia começa a acontecer, pelo menos no que diz respeito à democratização da propriedade da terra.

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