São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Vamos atender o apelo do papa

RAUL JUNGMANN

O apelo do papa João Paulo 2º no sentido de que façamos uma reforma agrária com respeito à lei traduz o exato pensamento do governo Fernando Henrique Cardoso.
O presidente elegeu a reforma agrária como uma das suas prioridades, e todo o governo está empenhado em realizá-la dentro do que preceitua a lei: sem invasões de terra e de prédios públicos, sem sequestros de funcionários, sem milícias particulares armadas, sem execuções -enfim, sem nada que seja ou venha a gerar violência.
Exemplo desse empenho foi o esforço do Executivo no sentido da aprovação, pelo Congresso, de leis como a do novo ITR, a do rito sumário e a da participação do Ministério Público nas questões que envolvem conflitos de terra.
Tudo contribuirá para agilizar e dar qualidade à reforma, mas esta deve ser realizada em paz e dentro da linha do apelo papal. E é exatamente isso que estamos promovendo: uma reforma com os olhos voltados para os homens que desejam produzir como agricultores e não para os que querem mudar usando métodos ultrapassados e, muitas vezes, brutais, ao arrepio do bom senso.
Ora, todos sabemos que a terra improdutiva desfigura por inteiro o preceito de sua função social. Sabemos, ainda, que a pobreza dos sem-terra não deve nem pode ser tolerada. Concordamos em que, se o homem é o centro, e uma existência digna, a "conditio sine qua" de sua integridade e desenvolvimento, tudo o mais deve submeter-se a esse desígnio.
Muitos, no entanto, acreditam que a pobreza deve ser combatida a qualquer preço, até mesmo o da democracia... É dessa crença que emerge a "legitimação profunda" das invasões.
Os que defendem as invasões como um meio legítimo -ou até único- de pressão para fazer avançar a reforma agrária partem de pressupostos tais como: 1) o poder público, historicamente, não funciona quando está em causa o benefício dos excluídos, em especial os sem-terra; 2) o latifúndio e interesses conexos possuem força suficiente para "barrar" a reforma. Acreditam que, "sem invasões, a coisa não anda".
Essa apologia das "ocupações" leva a outro tipo de reação: a formação, pelos fazendeiros, de milícias armadas. Essa dupla reação -invasões/milícias- não tem outro caminho: deságua no conflito não-mediado, ou seja, na violência.
A nosso ver, a única apologia correta é a do funcionamento do poder público, jamais a ação privada -sejam as invasões, sejam as milícias armadas. A lógica da ação privada, parta de quem partir, destrói o espaço público e descamba na violência. Quem se escuda nesta para superar a pobreza ou defender a propriedade aposta na "lei do mais forte" e, mais cedo ou mais tarde, subtrai dos demais -todos nós- a liberdade só possível nas democracias.
Sua Santidade também reclamou "ações corajosas". Acreditamos que faz parte dessa coragem o fato de o governo reconhecer, transparentemente, que a reforma agrária no Brasil carece de qualidade; que, como disse o próprio presidente, "os chamados sem-terra continuam sendo um problema grave, de tratamento dramático e dificílima solução"; e que é preciso reformar a reforma agrária.
É a coragem de ir em frente, com os olhos no futuro, mas realizando no presente. Como, de resto, se fez nos dois últimos anos, desapropriando mais de 3 milhões de hectares; assentando mais de 100 mil famílias; criando projetos como o Lumiar, que implanta um serviço descentralizado de apoio técnico às famílias assentadas, e o Cédula da Terra, por meio do qual, com apoio do Banco Mundial, barateia-se o custo da família assentada; realizando o 1º Censo Nacional de Reforma Agrária, uma ação conjunta com 35 universidades brasileiras que nos mostrará quantos são, onde estão e como vivem os milhares de trabalhadores rurais assentados.
São ações que, desde já, nos mostram uma reforma agrária embasada na qualidade e na técnica e que atenderá as demandas sociais de seus beneficiários.
É por isso que o Ministério de Política Fundiária e o Incra jamais se negaram a negociar tanto com os sem-terra quanto com os ruralistas, por intermédio de suas entidades mais representativas: Contag, SRB, CUT, CNA, sindicatos e outros. E com a igreja, que há muito vem lutando por uma reforma agrária capaz de acabar com as injustiças e levar, definitivamente, a paz ao campo.
O que o governo não quer, não pode nem deve é se tornar refém de radicais de métodos ultrapassados, que, de um lado e de outro, desejam mesmo é tumultuar o processo -uns por motivos puramente pessoais, outros por motivação política.
Assim -e para que possamos alcançar de fato uma reforma agrária como aquela com que sonham as pessoas de bom senso-, fazemos aqui um chamamento geral: vamos atender o apelo do papa. Vamos realizar, dentro da lei e em paz, essa reforma agrária. E, para isso, estamos preparados: o governo como um todo, a sociedade em geral e os produtores e trabalhadores rurais que pensam em produzir e ganhar o sustento da família com trabalho e produtividade.

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